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Artigo

Requiem para um Jardim- Rubem Alves
02/05/2021 Priscila Germosgeschi

Réquiem para um jardim

RUBEM ALVES

Ah! Meu jardim, jardim com que sonhei, minhas netas voando nos balanços, o barulho das fontes misturado ao canto dos pássaros, jardim sonhado pelos poetas e profetas... O que foi que lhe fizeram? Seus muros estão derrubados. Por todas as partes se ouve o rosnar dos lobos e das hienas. E não mais se ouve os risos das crianças.
Os balanços estão abandonados. Os namorados já não passeiam de mãos dadas pelas praças. E os adultos, por medo, se transformaram em toupeiras, refugiaram-se em buracos fortificados a que deram o nome de condomínios, inutilmente...
Jardim é coisa frágil. Não existe naturalmente. A natureza, em si, é bruta e insensível. São os sonhos e o trabalho dos homens que a transformam em jardim e a tornam bela e amiga.
Essa é a razão de os jardins serem cercados por muros. Os muros separam a vida da morte, a beleza do horrendo. Do lado de fora ficam as feras, os salteadores e os criminosos. Eles não amam os jardins. O que desejam é saquear os jardins. São emissários do mundo das trevas. Por isso não são humanos. Porque a marca dos seres humanos é o amor aos jardins. Foi assim que Deus nos criou, para que fôssemos jardineiros. Eles têm a aparência de humanos, mas não são. Ser humano é amar os jardins. Por isso eles não têm aquilo a que se deu o nome de "direitos humanos". Os "direitos humanos" foram criados para proteger a vida frágil que vive nos jardins: "Bem-aventurados os mansos..." Por isso, porque eles não são humanos, os direitos humanos não podem ser invocados para proteger os saqueadores dos jardins.
Para os que não entendem a linguagem da poesia, eu explico. O jardim é uma metáfora da sociedade: é a sua grande utopia, a estrela inatingível que indica a direção. O Estado é a instituição criada pelos jardineiros para proteger o jardim. Sua função não é plantar o jardim. Sua função é criar um espaço seguro para que os cidadãos-jardineiros possam plantar o jardim. Os jardineiros têm uma missão de amor. Por isso são fracos. Mas o Estado tem uma missão de força. Por isso ele tem de ser forte. É preciso ser forte para deter a morte.
O Estado constrói os muros. Os muros são as leis que dizem "não" à morte. Mas as leis, sozinhas, são fracas. É fácil pular o muro. Por isso o Estado cria "guardas do jardim", cuja missão é dar força às leis. Os jardineiros usam pás e enxadas, instrumentos de vida. Os "guardas do jardim" carregam armas, instrumentos de morte. Por vezes é preciso matar para proteger a vida.
A marca do Estado é a espada que ele tem nas mãos. Se, por acaso, o Estado se mostrar incapaz de usar sua espada para a proteção do jardim, ele perde a sua legitimidade. Um Estado incapaz de punir os criminosos deixou de ser Estado. Quando o Estado deixa de existir, o medo e a morte tomam conta do jardim.


Os saqueadores derrubam muros, invadem o jardim, roubam, intimidam, sequestram, assassinam

Os guardas do jardim são de dois tipos: os guardas que vigiam e punem os inimigos de dentro e os guardas que vigiam e punem os inimigos de fora: a polícia e as Forças Armadas.
Houve um tempo em que os guardas do jardim farejaram no ar que o nosso jardim estava sendo ameaçado por forças estranhas. A essas forças eles deram o nome de subversivos. Os ditos subversivos não eram saqueadores de jardins. O que eles queriam era substituir o jardim que existia por um outro jardim que, nos seus sonhos, seria mais justo e mais bonito. Em outras palavras: desejavam substituir a ordem social existente por uma outra. Daí o nome de "subversivos". O que estava em jogo era a "segurança nacional". Os guardas do jardim, tanto os de dentro quanto os de fora, se organizaram e, de maneira sistemática, científica e implacável, se lançaram à caça dos subversivos onde quer que se encontrassem nas cidades, nas florestas, nas montanhas. E a sua ação foi eficaz. Os ditos subversivos foram liquidados. Isso significa que, havendo vontade, os guardas do jardim podem proteger o jardim.
A situação mudou. Agora não é ameaça: é fato. A subversão se realizou. A ordem social não mais existe. A segurança nacional foi rompida. Os saqueadores derrubam muros, invadem o jardim, roubam, intimidam, sequestram, assassinam, ocupam territórios ao seu bel prazer, fazem tráfico de drogas, comerciam com países do exterior, impunemente. Sem medo, porque sabem que os guardas nada farão. E sabem que as prisões não os deterão. Delas saem quando querem, abertamente, à luz do dia, sem que o Estado faça uso da espada. A verdade é que o Estado brasileiro deixou de existir. Sua incompetência em usar a espada para deter e punir o crime o comprova.
Pergunto: por que os guardas do jardim foram tão eficientes há 30 anos e são tão ineficientes agora?
A resposta é simples: não se podiam fazer bons negócios com os subversivos de então. A única mercadoria de que eles dispunham eram suas idéias. Mas idéias não valem nada. Com elas não se fazem bons negócios. A perseguição se resolvia, então, com a sua morte.
A situação agora é diferente. Com os criminosos há muitos bons negócios a serem realizados. Negócios que são infinitamente mais lucrativos que o modesto salário de "guarda de jardim"... Por isso é essencial e mais lucrativo que continuem vivos. Os bons negócios prosperam com a sua vida...

 

fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2901200210.htm

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