Se já há um século atrás, Fernando Pessoa através de Álvaro de Campos escrevia sobre não haver gente no mundo, o que teria o poeta a dizer agora, se usasse as redes sociais? Hipoteticamente.
Será o exibicionismo da proeza e a supressão da falha, uma condição eterna do ser humano e que as novas tecnologias vieram amplificar?
"Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?"
Todos estamos bastantes familiarizados com o poema que aprendemos na escola, ou naquele grupo de teatro amador. Todos nós entendemos o poema, e mesmo assim, não conseguimos descer da condição de semideuses. Se há algo em que o ser humano não é bom é em dar parte de fraco. E cada vez mais nos afastamos dessa já rara característica e sacamos do orgulho próprio como topo das prioridades.
O marketing invadiu de tal maneira as nossas vidas, que começamos a investir no nosso próprio marketing pessoal, como se cada um de nós fosse uma marca registada a passear-se por aí. A pergunta que se impõe é: quem nos vai querer comprar, se todos andamos apenas a vender?
Os nossos telefones e computadores tornaram-se em janelas abertas para o mundo, pelas quais podemos espreitar o que quisermos a qualquer hora do dia. O que fariam os grandes génios de outros tempos se tivessem tido acesso a tanta informação como nós temos? Passariam o seu tempo a postar
selfies? Isso seria sim difícil de explicar a quem teve um conhecimento limitado do mundo mas uma curiosidade sobre ele avassaladora.
Hoje não somos curiosos. Fechámos as janelas para o mundo e abrimo-las para a casa do vizinho ou da prima ou daquele colega de trabalho que nem gostamos assim muito. Chamamos a essas janelas “redes sociais”, um termo discutível. Investimos na imagem que transmitimos a toda a hora do dia. Já não se trata só de aparecer bem vestido naquele evento, apresentar um marido ou uma esposa bem parecidos, ir à Igreja para ser visto todos os domingos. Agora temos nas nossas mãos um instrumento que nos pode fazer ficar bem com menos esforço. E melhor ainda, se essas nossas realidades não existem, então podemos mesmo inventar essas realidades. Nenhum dos nossos “amigos” de rede social entra fisicamente nas nossas casas para saber se é verdade ou não.
Agora sim podemos viver o sonho. Nunca foi tão fácil como agora ser tudo isso: bonitos, bem sucedidos, requisitados, viajados, atléticos, bons cozinheiros, amantes amados. Expliquem-me então, porque é que tantos de nós sofrem de depressão, ansiedade, e solidão?
Será possível que quem sorri para a objectiva do telefone um par de vezes por dia, sorria apenas um par de vezes por dia? A vida é vivida mesmo, e principalmente, quando não é registada. Somos felizes quando a vida é sentida, mais do que (re)criada.
Este tempo em que vivemos, é em muitos sentidos, fascinante. Temos ao nosso dispor tantos instrumentos e informação para sermos pessoas melhores e mais completas, mas sofremos o choque de não viver mais na ignorância. Essa ignorância que é tantas vezes uma dádiva.
Álvaro de Campos, aqui eu humana me confesso, nunca fui campeã em nada nesta vida. Mas vil já fui muitas vezes.