Os amplos edifícios de concreto com grandes janelas retangulares, mas com bordas arredondadas, projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer, são velhos conhecidos dos cariocas e de todo morador fluminense. Criados na primeira gestão (1983-1987) do governador Leonel Brizola e idealizados pelo educador Darcy Ribeiro, os Centros Integrados de Educação Pública, os Cieps, também conhecidos como Brizolões, completam 30 anos na paisagem do estado do Rio de Janeiro como símbolos de renovação e, em alguns casos, de abandono na Educação.
“Toda a proposta curricular visava a educação integral. O homem na sua integralidade, de sentimentos, afetos e cognição. Procurava-se também a integração dos conhecimentos. Havia uma parte da grade voltada para artes e esportes, além de estudo dirigido, para que os alunos que tivessem dificuldades as vencessem. Todos eram acompanhados. A ideia era dar estrutura para essas crianças. Todas tinham direito”, explica a professora Laurinda Barbosa, que é conselheira da Fundação Darcy Ribeiro, e estava na Secretaria Municipal de Educação do Rio na época da implantação dos Cieps.
O Ciep Tancredo Neves, situado no bairro do Catete, foi a primeira unidade a ser inaugurada, no dia 8 de maio de 1985. Com uma ampla quadra esportiva, consultórios médico e odontológico, animadores culturais, salas de leitura e de artesanato e ainda dormitórios para alunos residentes – somente estudantes que se encontrassem em situação de vulnerabilidade social –, o colégio recebia as crianças das 8 às 17 horas e atendia alunos, principalmente, do Morro Santo Amaro, que ficava bem próximo à sua localização. Na escola também trabalhavam diversos moradores do local, com o objetivo de que laços entre o colégio e a comunidade fossem estreitados.
Foi assim que a técnica de enfermagem Terezinha Souza tornou-se inspetora de alunos. “Chegou um aviso na comunidade que haveria inscrição no chamado Brizolão. Todo mundo veio se inscrever. Tinha muita gente. Foram selecionadas pessoas para merendeira e servente. Eu não queria nenhuma das duas funções, mas, para a minha surpresa, fui chamada para ser inspetora. E estou aqui até hoje”, diz com orgulho.
A filha e a neta de Terezinha também passaram pelo Ciep Tancredo Neves. Já sua irmã, Maria Márcia Souza, de 41 anos, foi aluna no ano da inauguração. Ela fez as antigas 3ª e 4ª séries do Ensino Fundamental e, hoje, é bacharel em Direito e secretária em um escritório de advocacia. “Naquela época, todos os outros alunos das escolas próximas queriam estudar lá, mesmo sendo o dia todo. Porque tinha quadra de esporte, Educação Física, serviço odontológico, artes cênicas e ainda fazíamos três refeições por dia. Os professores prestavam muita atenção nos alunos. Lembro que uma chegou a me mudar de turma, porque achou que não estava bem adaptada, por estudar com alunos mais velhos. Foi um período que lembro com muito carinho”, conta.
Ela ainda revela o que levou de aprendizado da escola para a vida. “Quando saí de lá, fui estudar no Senac, que era uma escola de mesmo perfil, com tempo integral. O Ciep me deu uma visão de responsabilidade, de ter um compromisso diário. Além disso, aprendi a conviver com pessoas diferentes, porque havia alunos de várias comunidades no entorno do colégio, mas não existiam rivalidades nem brigas.”
Problemas
Para se ter uma ideia, o Plano Especial de Educação, comandado por Darcy, que era vice-governador, tinha recursos de mais de 400 milhões de dólares. Um plano ousado, mas extremamente caro. “O Ciep é uma escola cara. Manter o aluno oito horas por dia não é fácil. Precisa oferecer café, almoço e lanche. Não pode ter só um professor. Requer um investimento maior. Investir em educação não é barato. É diferente de construir uma estrada, que em dois anos está pronta. Você investe hoje para só daqui a dez anos ter algum resultado”, diz a assessora da Superintendência Pedagógica da Secretaria de Estado de Educação, Tânia Barbosa, que teve seu primeiro emprego como professora alfabetizadora do Ciep 031, em Duque de Caxias.
Aos poucos, as atividades e os recursos começaram a ser cortados. “O projeto piloto deve ter durado uns três anos. Em 1988, já não tínhamos mais os consultórios médico e odontológico. Houve uma desaceleração desse projeto inicial também no quesito da quantidade de pessoas que ele inseria, tinha uma quantidade enorme de professores, uma cozinha muito grande, era tudo muito bem formado. Teria sido um sonho se o modelo tivesse se expandido. Seríamos uma sociedade melhor”, lembra Neyda Campos, professora readaptada e ex-diretora-adjunta, que trabalha no Ciep Tancredo Neves desde sua inauguração.
Para Tânia Barbosa, depois do fim dos dois governos Brizola houve uma queda na qualidade do ensino proposta no projeto original. “Se não tem Educação Física, se não tem sala de leitura, se as aulas só são dadas na metade do horário, se não funciona tudo como tem de funcionar, não tem mais a filosofia do Ciep.”
Além do alto custo e do fim de determinadas atividades, outro problema enfrentado na época foi a dificuldade do professor em trabalhar em horário integral, apesar de ter sido oferecida capacitação para todos os profissionais que trabalhavam no Ciep. “Muitos, apesar de fazerem treinamento, quando viram a realidade de frente, não aguentaram. Com a proposta da educação integral, quem eram os meninos que vinham para cá? Todos esses meninos, considerados problema, com dificuldades de aprendizagem e de socialização, que não se enquadravam no sistema regular. Portanto, não era todo professor que tinha estrutura. Primeiro, por trabalhar em um modelo no qual ele não estava acostumado, com tempo e educação integral e, segundo, por ter de lidar com essa moçada toda. Muitos não aguentaram mesmo. Não por deficiência de treinamento, mas por falta de querer encarar aquilo de frente”, explica Márcia Nunes, diretora-geral do Ciep Presidente Agostinho Neto, localizado no Humaitá.
Mesmo assim, a diretora acredita que muitos estudantes foram “salvos” nesse sistema. “Pelo respeito que eles tinham, pelas oportunidades que encontravam. Os profissionais que restaram aqui estavam dispostos a enfrentar esse desafio, e isso acabava trazendo os meninos para dentro da escola. Isso deu resultado e dá até hoje. Esses alunos mais trabalhosos gostam de estar aqui. Falar que vai tirar da escola é a ‘morte’ para eles. Hoje, todos os tipos de crianças estudam aqui, porque as mães trabalham em horário integral e precisam dos seus filhos estudando o dia todo.”
Apostando na educação
Segundo o Censo Nacional de 1970 e 1980, eram 24 milhões de pessoas sem escolaridade no Brasil. Foi nesse cenário, já no fim da ditadura, que o gaúcho Leonel Brizola assumiu a Educação do Rio de Janeiro como sua meta prioritária de governo. Uma comissão coordenadora, a cargo do vice-governador, educador e intelectual Darcy Ribeiro, foi então criada para elaborar o Plano Especial de Educação (PEE). Ao menos 52 mil professores de todo o estado chegaram a participar diretamente, em reuniões locais, de debates e revisões de teses elaboradas pela comissão coordenadora. Dos presentes, mil foram eleitos como representantes para os encontros regionais. No fim, cem desses profissionais discutiram a redação final das bases do PEE, que trazia diversas metas para a educação.
Segundo Laurinda Barbosa, a ideia da educação integral partiu do próprio Darcy. “Pensadores americanos, como John Dewey, e o próprio Anísio Teixeira, já falavam nessa concepção de transversalidade dos conhecimentos e dos temas como ética, estética e cidadania”, diz.
Para colocar todas essas ideias em prática, seriam necessárias novas unidades escolares, que precisavam ser belas, amplas, com baixo custo e de rápida execução. A responsabilidade ficou a cargo de Oscar Niemeyer, que usou a técnica do concreto pré-moldado, o que permitiria construir um Ciep inteiro em apenas quatro meses. O projeto era 30% mais barato do que a técnica convencional. Cada unidade era formada por três construções diferentes: um edifício principal, uma quadra polivalente e uma biblioteca.
Apesar da estrutura eficiente, um dos pontos da arquitetura foi duramente criticado pelos professores: as paredes vazadas, que tinham como objetivo permitir maior ventilação e passagem de luz. Mas o imenso barulho provocado no ambiente não havia sido pensado.
“Às vezes, a gente estava dando aula e começava o barulho. Pedia para que os alunos fizessem silêncio, mas continuava. Quando se percebia, o ruído vinha de fora. Um dos problemas que tivemos é que vários professores pediram licença por conta da voz. Há alguns anos houve uma reforma, aprovada pelo escritório do Niemeyer, para fechar as paredes”, conta Maria Laura Stoki, professora readaptada que trabalha há 27 anos no Tancredo Neves.
Educação integral e o modelo atual
Apesar de os Cieps terem sido construídos pelo governo do estado – foram mais de 500 unidades nos anos 80 –, atualmente, as secretarias Estadual (Seeduc) e Municipal de Educação (SME) do Rio de Janeiro dividem a gestão das escolas que funcionam nos edifícios projetados por Niemeyer. A primeira atende alunos do Ensino Médio e alguns estudantes do segundo segmento do Ensino Fundamental. A segunda toma conta da Educação Infantil e do Ensino Fundamental como um todo. Embora o projeto piloto sonhado por Darcy Ribeiro não tenha durado muitos anos, nos dias de hoje as duas secretarias buscam, a seu modo, resgatar o modelo desenvolvido pelo educador.
“Nosso objetivo não é apenas oferecer um horário integral, mas uma educação integrada. Ou seja, unir a competência cognitiva, que seria a aprendizagem das disciplinas, com a capacidade socioemocional, que é o desenvolvimento da responsabilidade e dos espíritos crítico, colaborativo e de investigação científica. O mundo do trabalho procura jovens que tenham essas duas habilidades, que são importantes para o século em que estamos vivendo”, diz a subsecretária de Gestão de Ensino da Seeduc, Patrícia Tinoco. Ela garante ainda que os alunos que começaram a estudar nesse sistema, em um ano, apresentaram rendimento 50% superior à média da rede estadual.
Já a secretária municipal de Educação do Rio, Helena Bomeny, diz que a proposta atual é inspirada nos modelos implantados nos países desenvolvidos. “Na época, o Ciep era o que se tinha de mais moderno. Fomos aprimorando e atualizando esse sistema. Nossa concepção hoje é de sete horas de aula. Atualmente, 21% dos 661 mil alunos da rede municipal do Rio já estudam nesse sistema, a meta da prefeitura é chegar a 35% até 2016. Para isso, ao longo do governo Eduardo, vamos entregar 331 novas unidades e reorganizar o aprendizado nas demais escolas.”
Além de resultados, os atuais alunos dos Cieps também aprovam o horário integral, mesmo o projeto não sendo mais considerado o original da década de 80. Leandro Teixeira, de 10 anos, do 5º ano, diz que, se ficasse em casa à tarde, não teria muito o que fazer: “Só assisto tevê e implico com meu irmão. Na escola, fico brincando”. Clara Rebeca, da mesma idade e ano de Leandro, concorda com o amigo. “Tem dia que não quero acordar cedo, mas aqui é legal, gosto de ficar no colégio porque tenho muitas amizades, a gente fica conversando, faz o dever de casa e o professor conversa com a gente”, conta.