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Como É A Infância De Crianças Sem Acesso À Internet?
Como é a infância de crianças sem acesso à internet?
Embora a internet seja fundamental para o exercício da cidadania, 5 milhões de crianças e adolescentes não acessam esse direito; conheça algumas histórias
iStock/arte Lunetas
- Publicado em: 24.06.2020
“Como funciona a internet?” Algumas crianças não hesitam em responder, ainda que desconheçam a engenharia por trás dos fios ou a ciência da programação de dados. Outras, diante do esforço, paralisam. Quando pensamos em infância e ambiente digital, as discussões que vêm à mente geralmente são tempo de exposição a telas, qualidade dos conteúdos consumidos ou o medo de uso impróprio de dados e informações de crianças e adolescentes. Enquanto há famílias preocupadas com o excesso, outras convivem com a falta. Para muitas crianças, ter um computador, um celular ou uma rede de internet de boa qualidade em casa ainda não é uma realidade.
O mundo digital não existe da mesma forma para todas as infâncias. No Brasil, 20 milhões de domicílios não têm internet, de acordo com dados da pesquisa TIC Domicílios 2019, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Dados preliminares do levantamento mais recente apontam que quase 5 milhões de crianças e adolescentes, entre 9 e 17 anos, vivem em domicílios sem acesso à internet no país. A exclusão é maior entre moradores das áreas rurais, das regiões Norte e Nordeste, e das classes D e E.
Embora ter internet seja considerado fundamental para o exercício pleno da cidadania – o direito ao acesso universal está previsto, inclusive, na lei 12.965/2014, o Marco Civil da Internet -, a questão vai além da dualidade entre ter ou não ter. Entre os “conectados”, por exemplo, há aqueles apenas com conexão móvel, plano pré-pago ou uso limitado de dados por aplicativos. Diferente de quando as relações físicas predominavam, hoje ter acesso à internet significa garantir direitos básicos como retirar documentos, dialogar com serviços públicos, trabalhar e participar da vida cívica.
“Não dá mais para falar de conexão/desconexão, é preciso falar da conexão integral à web. Não é possível imaginar crianças assistindo aula on-line, por exemplo, com dados de uma conexão pré-paga”
Essas são palavras da advogada Marina Pita, coordenadora do Coletivo Intervozes. Ela explica como as desigualdades no mundo digital são múltiplas, começando pelo tipo de dispositivo utilizado. “Nas classes D e E, só 14% dos domicílios brasileiros têm computador. Todos os recursos que a internet oferece – como fazer uma pesquisa, um texto, mexer em uma planilha – serão usados de forma diferente pela criança se ela tem apenas um celular”, afirma.
Com a velocidade de renovação das tecnologias, a relação também muda dependendo do tipo de dispositivo ao qual a criança tem acesso: existem os celulares mais modernos, que permitem instalar vários aplicativos, mas há aqueles com sistema operacional antigo, que não suportam algumas tarefas ou descarregam rápido.
Se antes a divisão entre ter e não ter conexão dava conta de evidenciar as desigualdades de acesso às tecnologias, agora o cenário é tão complexo que a discussão se tornou ultrapassada. A própria incorporação da internet nas atividades de rotina torna urgente pensar na qualidade das conexões existentes.
Para as crianças durante a pandemia de Covid-19, o acesso a uma boa internet significa garantir a continuidade da educação escolar, conversar com familiares que moram longe, realizar pesquisas e reencontrar os amigos virtualmente. “Como a internet é essencial hoje, a desigualdade é mais grave”, ressalta a advogada.
No Brasil, os instrumentos legais para o avanço da conexão estão limitados à banda larga móvel e praticamente inexistem em relação à banda larga fixa. O país apostou em políticas públicas para ampliar a cobertura, contudo os custos são mais caros e a conexão mais instável. Assim, a desigualdade no acesso à internet é reflexo da desigualdade social brasileira, o que pode comprometer o desenvolvimento infantil das populações em situação de vulnerabilidade. Para Marina,
“A internet pode permitir o acesso a bens culturais. Pessoas com esses dispositivos, desde cedo, terão vantagens como a possibilidade de explorar esse ambiente. Podemos fazer um paralelo com o brincar livre. Isso é muito potente”
Quando conversamos com crianças de várias partes do Brasil, percebemos que ter acesso a dispositivos e conexões influencia na visão de mundo delas. As crianças expressam o desejo de se sentir parte do ambiente digital e o consideram ferramenta importante para a educação e para estar em contato com outras pessoas e realidades. Ninguém quer ficar fora da internet, ainda que ela seja limitada.
Conheça algumas dessas histórias de não acesso à internet narradas pelas crianças
Maísa Santos Menezes, 8 anos – Cairú (BA)
Moradora de um povoado no distrito de Boipeba, Maísa nunca teve internet em casa. A sua primeira vez, sozinha, no mundo virtual foi no celular da irmã, comprado há dois meses. “Eu gostei de usar, fiquei pesquisando desenhos infantis. Antes, quando precisava fazer algum trabalho da escola, ia pra casa do vizinho, que lá tem internet. Eu sinto falta de ter internet, porque me ajuda nos trabalhos da escola, para pesquisar. Mas, geralmente, quando preciso, vou nos livros. Só que eu prefiro a internet, porque você encontra tudo”, conta. Sem computador em casa, a rotina dela é brincar na rua. “De pique-esconde, pega-pega, boneca, pega-gelo, roda… Também ajudo minha mãe e faço o dever da escola”. Quando ela pensa em tecnologia, a primeira imagem que vem à mente são os jogos no celular recém-comprado da irmã. A maior alegria proporcionada pelo digital até então é a possibilidade de falar com os irmãos, que moram em Moreré. Maísa está desenvolvendo o gosto pelo acesso à internet aos poucos. “Mas não sei como funciona, talvez um fio que liga à rede?”, diz, depois de pensar por alguns segundos em silêncio.
Érica Diniz, 12 anos – Manaus (AM)
A primeira vez que Érica usou a internet foi há três anos, na escola. “Estava fazendo uma atividade de matemática no computador. Achei muito legal”, conta. Um novo contato com a vida virtual aconteceu este ano: por causa da pandemia, ela está acessando as atividades escolares em computadores do Instituto Restaurar, que promove e defende os direitos de famílias e comunidades. “A gente não tem internet em casa, apenas um celular, que é só para ligar”, explica. Para ela, entretanto, internet não faz falta. “Eu me ocupo de outras coisas: brincando, lavando a louça, vendo TV, lendo livros. Quando preciso pesquisar alguma coisa, vou nos livros que tem lá em casa”, conta. Outra opção é ir na lan house. “Minha mãe também tira cópia dos trabalhos e traz para mim.” Para ela, a função principal da internet é: estudar a distância, se desenvolver. “Não sei mexer muito bem nem sei como ela funciona”.
Abeni Olusimi de Luna, 8 anos – Terra quilombola Recanto do Coco – Arcoverde (PE)
Abeni sonha em ter um computador. “Vou ter depois.” O contato dela com a internet é restrito, pelo celular da mãe, só nos finais de semana e com a mediação materna. Há quatro anos, a família colocou Wi-Fi em casa, por necessidade, mas a conexão oscila muito. “Eu quero um computador para estudar e para brincar. Eu estou sem estudar, na minha escola não tem aula on-line”, conta. Abeni ganhou um celular usado há cinco meses, mas o aparelho está quebrado. “Eu me preocupo, pois fico sem saber de nada. Aí eu tenho que descobrir se está tendo aula ou não. Eu amo estudar, estou sentindo muita falta”, diz. O dia a dia dela, principalmente na quarentena, tem sido ocupado pelas brincadeiras com a prima. “Eu acordo, tomo café e a gente passa metade do dia brincando de boneca, maquiagem…”, conta.
Eliandra Lays Nascimento, 6 anos – Terra quilombola Curiaú, Macapá (Amapá)
O primeiro contato de Eliandra com a internet foi aos três anos de idade. Um dos irmãos mais velhos precisava realizar as atividades da faculdade, o que motivou sua mãe a comprar um celular e colocar Wi-Fi na residência. Desde então, a menina garante que tem muito contato com a internet, ainda que sem computador. “Na pandemia, como não estou estudando, pois não tenho aulas on-line, vejo desenhos no YouTube quase todo dia na TV”. Fora desse período de exceção, o uso é restrito aos fins de semana. Ela conta que sente falta, adora pesquisar informações sobre biologia e animais silvestres, como as cobras, mas aproveita para fazer outras coisas. “Brincar com os meus amigos é melhor que brincar na internet. Depois que passar isso tudo, vou chamar eles para um churrasco aqui em casa.” Quando não tem acesso para fazer pesquisas on-line, corre para a casa dos parentes. “Ou uso os livros. Mas prefiro a internet.”