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Como Lidar Com Uma Família Que É Diferente Da Sua
Como lidar com uma família que é diferente da sua
Conceito mudou e tornou-se mais abrangente. A escola precisa discutir isso?
POR:Paula Calçade
09 de Maio de 2018
Foto: Getty Images
Os arranjos familiares com diversas configurações sempre existiram. Uma mãe cria seu filho sozinha, uma criança é de responsabilidade de avós ou tios, pais se separam e casam novamente, constituindo uma nova família, e todos os filhos moram juntos sob o mesmo teto. As possibilidades são múltiplas e “Dia das Mães” e “Dia dos Pais” já não parecem fazer tanto sentido e dão lugar, inclusive, para celebrações como o “Dia da Família” de algumas escolas municipais de São Paulo. Adaptações como essa integram as metas de aprendizagem apoiadas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) para 2030, que incorporam reflexões na Educação para a promoção de direitos. Em outras palavras, o que antes se enxergava sob a definição “família desestruturada” ficou velho.
“As instituições de ensino tinham que lidar com essa diversidade, mas a enxergavam como uma família desestruturada”, aponta Alexandre Bortolini, pesquisador em Gênero e Sexualidade na Educação da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do projeto Diversidade Sexual na Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Alexandre explica que uma criança criada apenas pela mãe era vista pelos agentes escolares, muitas vezes, sob a perspectiva da figura paterna ausente e que servia de “explicação” para os possíveis problemas no desenvolvimento escolar. “Fica implícito uma norma do que é a família, um modelo heterossexual, casado e sem dificuldades financeiras”, afirma.
Carol Patrocínio diz que sofreu esse estranhamento nas escolas em que matriculou seus filhos. Jornalista e com dois filhos, um de 14 e outro de 7 anos, Carol é uma mulher branca, bissexual e foi mãe sozinha aos 18 anos. Hoje, é casada com um homem negro. “Minha primeira experiência escolar foi a de uma mulher muito jovem e solteira, o que já gerava preocupações entre coordenadores e professores”. Esse receio deu lugar a um novo preconceito, seu atual parceiro é considerado pai para seu filho mais velho, mesmo não sendo o biológico, mas em reuniões de pais um rapaz negro sendo o responsável por uma criança branca já gerou olhares confusos, lembra.
Mesmo diante de possíveis rejeições nas escolas, famílias com configurações consideradas diferentes já não são exceção no Brasil. Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, o arranjo familiar formado por casais heterossexuais com filhos é de 50% da população e a outra metade é constituída por diversas possibilidades. Casais sem filhos e sem outros parentes somam 15%, mães com filhos são 15,3% e homens com filhos, 2% de todas as famílias brasileiras. A tendência de modelos plurais continua nesta década: o Registro Civil de 2016, também do IBGE, aponta para uma diminuição de casamentos e nascimentos, mas para um aumento de 4,7% nos divórcios em comparação com o ano anterior. Os dados mostram ainda uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, que se constituem como 0,5% de todos os casamentos no país naquele ano.
Mais pluralidade nas escolas
A regulamentação do casamento homoafetivo no Brasil completa cinco anos neste mês e cerca de 15 mil registros foram oficializados até 2017, de acordo com IBGE. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Com isso, os modelos de famílias passam a ser ainda mais múltiplos, duas mães e dois pais criam filhos e podem encontrar acolhimento ou, infelizmente, preconceito nas escolas.
Maria Helena Carvalhaes é professora de filosofia do cursinho Poliedro e de uma escola particular em Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo, e é mãe de duas meninas, além de ter um enteado, filho de sua esposa, com quem é casada há dois anos. “Somos um perfil de família fora do padrão da escola”, afirma, explicando que os filhos estudam na escola onde leciona e sua parceira já chegou a trabalhar na mesma instituição. “Eu me sentia diferente, não sofremos discriminação dos colegas, mas não me sentia muito bem como mãe de aluna”, lembra a professora que se dizia desconfortável em grupos de pais no WhatsApp, em que presenciou o compartilhamento de mensagens preconceituosas.
Diante de um perfil mais homogêneo de arranjo familiar em sua escola, uma das soluções encontradas por Maria Helena foi agir dentro das salas de aula para promover o respeito à diversidade. A professora também leciona a disciplina de ética para os últimos anos do Ensino Fundamental II. Gênero e orientação sexual são eixos transversais nas aulas e os alunos falam abertamente sobre essas questões. “As reclamações de alguns pais diante dessas discussões são menos frequentes quando os alunos são mais velhos, porque os próprios meninos levam um diálogo saudável para dentro de casa”, conclui.
Essa atitude é corroborada por Lena Vilela, diretora e educadora sexual do Instituto Kaplan, especializado em educação em saúde e responsabilidade sexual. “Assim como passamos informações sobre DST/Aids e prevenção de gravidez, falar sobre sexualidade e gênero precisa deixar de parecer opinião, é reflexão e conhecimento”, afirma, ressaltando que o principal empecilho para a assimilação da diversidade é não manter a educação sexual e de gênero como parte do calendário escolar, o vem acontecendo no Brasil.
Em 2014, o Plano Nacional de Educação (PNE) foi aprovado pelo Congresso Nacional, mas sem o trecho que se referia especificamente a gênero e sexualidade, após várias discussões e polêmicas. O Ministério da Educação (MEC) tirou o termo “orientação sexual” da terceira e última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Fundamental, aprovada em dezembro de 2017. “O MEC não definiu como a educação sexual deve ser implementada, apenas recomenda que deva ser passada como matéria transversal a todas as disciplinas, mas o que é todos, acaba sendo de ninguém”, defende a diretora do Kaplan, argumentando que, como é um tema que precisa de aprofundamentos e estudos, seria mais viável que as escolas separassem espaços próprios no cronograma com professores qualificados para essas discussões.
Foto: Getty Images
Escola para todos e todas
“Muitas escolas já superaram o Dia dos Pais, por exemplo, mas por uma constatação de que em muitas famílias heteroparentais há a ausência dessa figura, mas a norma continua lá”, ressalta Alexandre Bortolini, dizendo que esse passo não chega a romper com antigos valores. Para o pesquisador da UFRJ, o reconhecimento de múltiplos modelos de família pelas escolas é central para uma pedagogia crítica em relação a gênero e sexualidade, problematizando o senso comum e os discursos naturalizadores, que acabam por reproduzir estereótipos, violência e preconceito.
Na contramão da assimilação dessa diversidade, 62 Projetos de Lei (PLs) relacionados ao movimento Escola sem Partido tramitaram ou tramitam no Congresso Nacional e nas casas legislativas de pelo menos 12 estados e 23 cidades do país desde 2014. Esses PLs tratam de temas como a proibição da discussão do debate sobre gênero nas escolas, de acordo com o monitoramento da ONG De Olho nos Planos.
Margaret Toba, coordenadora do Colégio Anglo São Paulo e professora de filosofia, afirma que não consegue imaginar um ambiente escolar saudável para todos sem as discussões sobre diversidade, uma vez que ela é constante tanto dentro como fora da escola. A coordenadora diz que quando os alunos buscam esses temas, acabam refletindo, inclusive, sobre suas famílias. No ano passado, os debates em aula sobre machismo e a evolução do papel da mulher foram demandas dos alunos, que enxergavam mudanças em suas casas e realidades, segundo Margaret. “A própria mãe, às vezes, é a principal ou única provedora do lar, sua imagem tem mudado muito para os alunos e é dever da escola discutir isso”, afirma.
Em um ambiente aberto para a pluralidade, o acolhimento não é surpresa. “Temos um aluno trans, os pais pediram para que houvesse conversas entre todos para uma maior conscientização”, diz Margaret. “A minha felicidade é que o assunto acabou sendo muito natural na escola”. A professora diz que esse aluno já usa o banheiro masculino e escolherá o nome social, que será aceito pela instituição. “Quando eu entrei na sala do terceiro ano do Ensino Médio para conversar sobre isso, eles disseram ‘Achávamos que era algo sério, isso é tranquilo’”. A coordenadora ressalta que, mesmo diante da presença de pais religiosos em sua escola, nunca houve rejeição a essas discussões, uma vez que o respeito à diversidade é promovido por meio de rodas de conversa entre alunos e professores, discussão entre coordenadores e contato saudável com os pais. “É uma realidade cada vez mais presente no mundo, que deve ser assimilada pela escola”, diz antes de concluir: “É inevitável”.