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Cotas Raciais: 15 Anos Depois
Cotas raciais: 15 anos depois, professora da UnB faz balanço sobre reserva de vagas
Universidade de Brasília foi 1ª federal do país a adotar sistema nos vestibulares. G1 ouviu a professora Renísia Filice; leia entrevista.
Por Marília Marques, G1 DF
15/04/2018 10h04 Atualizado 2018-04-15T13:18:46Z
Alunos conferem resultado de vestibular da UnB, em imagem de arquivo — Foto: (Foto: Divulgação/UnB Agência)
No mês em que a política de cotas raciais da Universidade de Brasília (UnB) completa 15 anos, uma portaria da na última terça-feira (10), pelo governo federal, reacendeu o debate sobre o sistema que reserva vagas para negros e indígenas em seleções públicas.
Com a nova medida, fica regulamentado no país que, ao se autodeclarar negro – preto ou pardo –, o candidato a um concurso público deverá passar, obrigatoriamente, por uma comissão avaliadora.
A "heteroidentificação", como é chamado o procedimento, significa que a autodeclaração do candidato sobre a própria etnia será confirmada por uma banca. A medida tenta evitar fraudes, e garantir que apenas candidatos negros e indígenas sejam contemplados pelas cotas voltadas a eles.
Pioneira na implementação das cotas raciais, a UnB ainda não adota, de forma ampla, esse método. Para ter acesso às vagas, basta a declaração do próprio estudante. No entanto, em 2017, após uma série de suspeitas, a universidade instaurou uma comissão para investigar, pelo menos, 100 alunos brancos que teriam entrado pelas cotas.
Professora da UnB, Renísia Filice faz balanço sobre 15 anos de implementação das cotas raciais na universidade — Foto: Marília Marques/G1
Membro da comissão que apura os casos, a professora da UnB Renísia Filice – doutora em educação e pós-graduada em estudos étnicos e raciais – recebeu o G1 em seu gabinete para um balanço dos 15 anos de políticas afirmativas no país. Sobre a investigação, a docente afirma que os candidatos estão sendo reavaliados. "Pretendemos terminar os trabalhos ainda no primeiro semestre", diz.
Em entrevista anterior, Renísia explicou que a ideia da comissão "não é punir, apontar dedos, e nem instituir qualquer coisa como um tribunal racial", mas, sim, "propor uma discussão".
Confira, abaixo, a entrevista com a professora Renísia Filice:
G1 - As cotas completam 15 anos em 2018 e são uma conquista dos movimentos que promovem a igualdade racial no país. Como podemos explicar o que são essas políticas afirmativas e por que elas são importantes?
Renísia Filice - As políticas afirmativas extrapolam o sitema de reserva de vagas para negros, negras e indígenas. Essas são políticas criadas, especificamente, para tratar os diferentes como diferentes.
As políticas afirmativas, como as cotas, são pensadas pelo governo para interferir nessas mazelas, tentando equalizar as oportunidades para que as pessoas possam concorrer em condições mínimas de igualdade. A ideia de República prega que todos têm que ser tratados com igualdade.
Cabe ao Estado reconhecer essa desigualdade e pensar como superar a diferença imensa que há em relação ao tratamento dado a essas populações.
Professora Renísia Filice, da UnB, faz balanço sobre cotas raciais — Foto: Marília Marques/G1
G1 - Qual balanço podemos fazer de uma década e meia dessas políticas? Há mais inclusão ou as mudanças ainda não são perceptíveis?
Renísia - Temos uma legislação que avançou, mas, por outro lado, as mudanças foram muito pequenas. Há muito por se fazer.
"É dificil encontrar um brasilerio que fale que não há racismo, mas em compensação, quase ninguém se reconhece como racista."
A UnB foi a primeira federal a adotar cotas. Os dados que apresentamos mostram que a presença de mais cotistas, em hipótese alguma, diminuiu a qualidade da instituição. Em termos qualitativos, os estudantes negros podem ter entrado com uma defasagem, mas já estão equiparados aos demais, têm mais horas de estudos.
Em relação à juventude negra, temos o Mapa da Violência que permite ver que os jovens negros continuam sendo os mais massacrados. Para isso foi criado o Juventude Viva [programa do governo federal], mas as políticas nunca saíram do papel. Faltou monitoramento e compromisso.
G1 - Falando especificamente da política de cotas raciais. Qual balanço podemos fazer desses 15 anos de implementação na UnB?
Renísia - Foi um grande acerto essa denominação de pretos e pardos pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. O que assegura essas pessoas é o pertencimento racial. O Brasil ainda não se reconciliou com sua origem negra e indígena.
No caso do acesso à UnB, nada está resolvido. As pessoas têm receio do deslocamento, no sentido de sair da sua zona de conforto e pensar que o Brasil é muito mais do que elas querem crer.
"O sistema de cotas abalou a conjuntura, mas não mudou a estrutura."
Às vezes, essas pessoas estão tão motivadas pela sua forma de entender o mundo que não percebem que outras dinâmicas são possíveis. É importante o ingresso e mais importante ainda a permanência com qualidade.
Aula em anfiteatro da Universidade de Brasília (UnB) — Foto: Isa Lima/UnB Agência
G1 - Em 2004, o primeiro grupo de alunos cotistas acessava o ensino superior. Na época, qual era o pensamento da maioria dos professores? Existia um preconceito sobre o desempenho desses estudantes?
Renísia - Em função da não-assistência do Estado para inclusão de pessoas negras e indígenas, temos um grande número de alunos na rede pública que não têm um corpo docente qualificado. Então, elas vêm com uma defasagem.
Logo após a abolição da escravatura, um grande número de pessoas foi largada à própria sorte, a população negra foi alijada desse atendimento. Hoje o ensino nas escolas públicas não oferece as mesmas condições. Não tem a ver com a capacidade dos alunos, mas a ausência de oportunidades faz com que ele chegue com essa defasagem.
"A nota de corte existe. Se existe uma reserva de vagas para negros, eles vão ocupar essas vagas."
Nas [universidades] federais, temos 1% de professores negros, por isso as políticas afirmativas são para que tenhamos uma lei que ressignifique a identidade negra e procure criar um corpo docente diferenciado.
Renísia Filice, professora da UnB, é doutora em educação e pesquisa questões raciais na universidade — Foto: Marília Marques/G1
G1 - Vivemos um momento de risco às políticas afirmativas no país?
Renísia - Se houver uma avaliação séria, seria mínima a possibilidade dessas políticas acabarem, porque os resultado são positivos. Vemos como jovens negros estão se sentindo muito mais organizados, ocupando espaços no mercado de trabalho.
G1 - Como é possível garantir mais ações de igualdade no dia a dia, em empresas privadas, em outros ambientes que fogem à gestão do Estado?
A presença negra em cargos executivos e de gerência ainda é ínfima. Houve mudanças ao longo do tempo, mas poucas.
"Em cargos de gestão, por exemplo, a população negra ainda não está representada."
Existem, sim, propostas para que as políticas afirmativas cheguem às empresas, mas em sua maioria o Estado tem respondido mais que a iniciativa privada.
Cotas raciais no país
Alunos no Instituto Central de Ciências (ICC) da Universidade de Brasília (UnB) — Foto: Secom/UnB
Foi em abril de 2003 que a Universidade de Brasília divulgou a decisão que iria aderir ao sistema de reserva de vagas para candidatos negros e indígenas. No ano seguinte, no segundo semestre de 2004, cerca de 450 alunos tiveram direito a 5% do total de vagas.
Oito anos depois, a Lei de Cotas foi estendida para todas as instituições federais de ensino superior do país, no entanto, além de racial, o critério passou a ser também social, ou seja, alunos de baixa renda, que estudaram em escolas públicas – mesmo que brancos – também começaram ter direito às vagas reservadas.
Uma década e meia depois, a UnB se destaca por ter, pela primeira vez, mais da metade do número de alunos, que se autodeclaram negros. Em 2017 o grupo representava 50,6% dos matriculados.
Um levantamento da universidade, feito a pedido da reportagem, mostra que, nos últimos 15 anos, 47 mil estudantes acessaram cursos de graduação e de pós-graduação por meio das cotas.