Artigo
Crise sanitária, humana e ecológica. O que pensa o biólogo Humberto Maturana
“A aceitação do outro junto a nós na convivência, é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade.” (Humberto Maturana, 2009).
Lendo as análises, reflexões e teses elaboradas por este verdadeiro gênio da Biologia / Neurobiologia, Humberto Maturana, percebo a dimensão do quanto é necessário a ampliação de nossas percepções / concepções sobre o conceito de vida, de humanidade e das relações que estabelecemos conosco, com o outro e com o ambiente, como tão bem foi explicitado por Félix Guattari em “As três ecologias” (1989).
Humberto Maturana Romesín nasceu em Santiago (capital do Chile) em 14 de setembro de 1928, onde faleceu no dia 6 de maio de 2021, aos 92 anos. É o criador da teoria da Autopoiese e da Biologia do Conhecer, junto com Francisco Varela (biólogo e filósofo chileno, 1946 – 2001); é, também, um dos propositores do pensamento sistêmico e do construtivismo radical (WIKIPÉDIA, 2021). Sua última atividade acadêmica ocorreu no dia 1º de maio de 2021, em uma aula-magna na Máster Internacional en Educación Emocional y Neurociencias Aplicadas de la Fundación Liderazgo no Chile (SEPÚLVEDA, 2021).
Sobre a crise que a humanidade está vivendo no enfrentamento da pandemia COVID-19 e sua relação com o ambiente, Maturana destaca que “Somos uma unidade biológica-cultural como humanidade”, e só poderemos sair da crise que vivemos “deixando de competir para colaborar, corrigindo nossos erros no respeito mútuo, atuando em um projeto comum” (SEPÚLVEDA, 2020).
Humberto Maturana afirma que “se não nos encontrarmos no mútuo respeito e colaboração, não iremos gerar mudança alguma orientada para o bem-estar da humanidade”. Para o biólogo, ser colaborativo é uma característica biocultural do Homo sapiens e, portanto, essencial à manutenção da vida enquanto expressão de uma espécie. Assim, a ênfase que se tem dado à competição, colocando os humanos como predadores, faz com que Maturana seja ainda mais contundente: “Sem a pandemia ou com ela, iremos direto à nossa extinção” (ADITAL, 2021).
Suas teorias ajudam a repensar outras áreas do conhecimento (Pedagogia, Psicologia, Sociologia, Economia, Comunicação), pois, ao conhecer os processos biológicos e sociais que comandam o desenvolvimento do Sistema Nervoso, o cérebro e os atos cognitivos, processos que justificam a nossa humanidade, nos permitem ver, com mais detalhe, como somos capazes de representar, e assim, transformar o mundo (FRANCO, 2001). [Grifo nosso]
Para aguçar o desejo de conhecer mais e melhor as teses do biólogo/neurobiólogo, Humberto Maturana, eis alguns insights de um intelecto genial:
i) Altruísmo: condição biológica natural.
“... os impulsos altruístas, presentes desde o começo de nossa vida de seres sociais (centenas de milhões de anos atrás), são a condição biológica de possibilidade do fenômeno social: sem altruísmo não há fenômeno social. Triste é constatar que as condições atuais de nossas sociedades estão atentando contra a plena realização desse altruísmo biológico natural e suicidando nossa vida social ao se empregar contra outros seres humanos a força de coesão social que brota de nossos naturais impulsos e necessidades de comunicação e de pertença a um meio comunitário e cultural.” (MATURANA; VARELA, 1995)
ii) Autopoiese: centro da dinâmica constitutiva dos seres vivos.
Maturana afirma que “Os organismos vivos, desde o nível dos componentes celulares às comunidades de seres vivos, são, desse modo, sistemas autônomos que se autoproduzem e se autorregulam. Entretanto, paradoxalmente, eles também são dependentes, pois precisam recorrer aos recursos disponíveis no meio ambiente para manter sua autopoiese. (...) Cada ser vivo tem uma organização que o define, o modo como ele se configura, a qual é sustentada por uma estrutura resultante da forma como seus componentes se interconectam e interagem sem que a sua organização se altere. Ou seja, a estrutura muda o tempo todo para manter sua organização, adaptando-se às modificações do seu ambiente, que também são contínuas.” (RIOS NETO, 2021).
iii) Linguagem e aceitação do outro: base das ações humanas.
“Maturana também sustenta que, do ponto de vista biológico, a aceitação do outro é o que dá origem ao social como acontece em qualquer comunidade de seres vivos. Entretanto, não é isso que ocorre entre os humanos. As sociedades humanas funcionam a partir de uma dinâmica de comportamentos forçados, que é o padrão da cultura patriarcal, na qual se sustenta a visão econômica de mundo. Esse padrão de comportamento foi reforçado ainda mais pelo chamado darwinismo social, que traz a noção de que o mundo é uma grande arena, ideia concebida pelo filósofo, biólogo e antropólogo inglês, Herbert Spencer, por alguns considerado o profeta do capitalismo laissez-faire, que cunhou a expressão “sobrevivência do mais apto”. Essa é uma versão da teoria evolutiva da seleção natural, não aceita totalmente pelo próprio Darwin, que ultrapassou o domínio da biologia, e estendeu-se até o âmbito cultural (RIOS NETO, 2021).”
A humanidade sofre os impactos (positivos e negativos) de suas ações para consigo, com o outro e com ambiente, como estamos assistindo em pleno século XXI, em meio a uma pandemia avassaladora, que já dizimou mais de 3.270.000 (três milhões, duzentos e setenta e quatro mil) vidas, em todo o mundo (JOHNS HOPKINS, 2021). Com a ciência avançando em todos os níveis (biológico, infectologia, químico, físico, biotecnológico etc.), o que explica tanta pobreza e tantas vidas humanas a sobreviverem em condição de miserabilidade? Como é possível, em meio a 195 países (segundo a ONU), apenas 10 (Europa e Estados Unidos) terem acesso a um maior número de vacinas contra a COVID-19, e 130 países não serem contemplados com nenhum tipo das vacinas existentes? “Considerando que existem 7,7 bilhões de pessoas no mundo, seriam necessárias cerca de 15 bilhões de doses de vacinas para imunizar todo o planeta. Usando um valor médio de US$ 15 por dose (R$ 75), seria necessário desembolsar US$ 225 bilhões, ou mais de um R$ 1 trilhão, para a imunização total - o que representa 70% do que os cinco maiores multimilionários do mundo obtiveram no último ano” (MELO, 2021), portanto, não é por falta de dinheiro.
Em suas análises / reflexões contidas em um de seus principais livros, “A Árvore do Conhecimento”, Matura e Varela (1995) já nos alertavam que
“Não é o conhecimento, mas o conhecimento do conhecimento o que nos compromete. Não é saber que a bomba mata, e sim o que queremos fazer com a bomba que determina se a usaremos ou não. Isso geralmente se ignora ou se finge desconhecer para evitar a responsabilidade que nos cabe em todos os nossos atos cotidianos, já que todos os nossos atos, sem exceção, contribuem para formar o mundo em que existimos e que legitimamos precisamente por meio desses atos, num processo que configura nosso vir-a-ser. Cegos diante da transcendência de nossos atos, fingimos que o mundo tem um vir-a-ser independente de nós, justificando assim nossa irresponsabilidade e confundindo a imagem que buscamos projetar, o papel que representamos, com o ser que verdadeiramente construímos em nosso viver diário.”
O acesso a conhecimentos que nos permitam avançar na compreensão das relações que possibilitem a ampliação e aprofundamento sobre o Homo sapiens enquanto organismo biológico e sociocultural, é basilar. Nesse sentido, Humberto Maturana ao longo de sua existência enquanto biólogo, neurobiólogo, cientista, pensador, nos trouxe reflexões e teses que versam sobre todas essas questões, reconhecido nos meios acadêmicos e científicos em todo o mundo. Por que esse reconhecimento não acontece no meio acadêmico, especificamente nos cursos de Ciências Biológicas, no Brasil?
Se os achados científicos de Maturana não estão sendo incorporados pela política educacional nas universidades, e tudo indica que não o serão, que ao menos possam servir para “fornecer os fundamentos biológicos para compreendermos a barbárie e o colapso climático para os quais a civilização está deslizando”, reforçando mais uma fase “muito sombria da história em que o ego humano, em suas mais destrutivas expressões, ameaça reinar absoluto, sem contrapesos para contê-lo ou pelo menos mitigá-lo” (RIOS NETO, 2021).
Fonte: https://www.labcriatumbuzeiro.com/post/crise-sanit%C3%A1ria-humana-e-ecol%C3%B3gica-o-que-pensa-o-bi%C3%B3logo-humberto-maturana-1928-2021-1