Um conto brasileiro de 1972, "O arquivo", de Victor Giudice e um clássico centenário da literatura internacional "A metamorfose", de Franz Kafka, assombram-nos com duas vivência surreais, dois personagens destituídos literalmente de sua humanidade, transformados em coisas inócuas, medíocres e nojentas, dois processos de revirar as entranhas, que acontecem todos os dias por aí, que acontecem sem percebermos dentro de nós mesmos.
do em literatura por Gustave Caligari
Desde o século XIX há um grito que ecoa no ar para nós cinzentos habitantes do capitalismo: cuidado para não desumanizar-se! Em verdade, já estamos desumanizados, restava agora descobrir como retormarmo-nos.
Até hoje Marx parece a insuperável filosofia do nosso tempo, ainda que Sartre tenha voltado atrás ao dizê-lo no século passado.
Alienados, explorados e por fim desprezados vendemos nossas almas ao sistema e todas as nossas relações e atividades se tornam insípidas, família, lazer, arte.
Há várias obras incomodas de ler, não só das áreas do conhecimento, mas da literatura, que nos relembram nossa triste condição. Academicamente não acho o capitalismo tão simplista e estático, ou seja, que sua análise possa vir do século XIX até hoje intacto numa máquina do tempo. Mas sem mais delongas o que me gritou atualmente “cuidado para não desumaniza-ser” foi o conto de Victor Giudice, escrito em 1972, chamado “O arquivo”.
O encontrei em forma de vídeo, narrado por Antônio Abujamra em um programa que cheguei a ver sem maturidade para entender, “Contos da meia noite”, da TV Cultura. O vídeo se inicia com a dilacerante afirmação de Tereza Freire “a expressão flexibilização trabalhista é o eufemismo consagrado pelos cardeais do neoliberalismo para promover diálogo entre o pescoço e a guilhotina.”
https://youtu.be/G5VvislfQ4Q
“No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.” Isso mesmo, o conto inicia com esta frase, onde o “j” é minúsculo e se verá neste personagem medíocre não a aceitação, e nem tampouco a melancolia da sua situação, a reação de joão é de que não se esforçou suficiente. Sorriu e agradeceu ao chefe.
O que até aí parece normal se torna incomodo e surreal quando descobrimos que a cada redução joão se sentia recompensado! As reduções eram invariavelmente aplicadas tão somente à ele e em períodos de excelência da empresa, não por dificuldades.
O protagonista se sente invejado por todos, por melhor que o patrão lhe receba a cada diminuição ele sente que ainda não está alcançando todo seu potencial. A cada redução o personagem se muda para mais longe, toma mais conduções, passa mais tempo fora de casa, tem menos tempo livre, menos horas de sono, se alimenta cada vez mais deploravelmente.
Quando fora rebaixado de cargo, com férias reduzidas, a expressão que o autor usa para descrever o sentimentos de joão é “radiante”! E assim ele passou 40 anos no mesmo emprego. Fora o primeiro e único.
Eis que um monte de rugas, seco e amarelado, compareceu a presença do chefe para ser notificado que seu salário fora ELIMINADO! Sem férias. E agora limpador de sanitários. Da contabilidade aos sanitários. De casas cada vez mais afastadas para viver nos campos, dormindo 15 minutos, cobrindo-se com farrapos e comendo raízes.
João respondeu que não continuaria, queria requerer sua aposentadoria, porém o patrão enfático ainda lembra que são 40 anos, que aquele ainda é um homem forte, em breve ele terá que pagar para trabalhar!
“A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
João transformou-se num arquivo de metal.”
Diante desta transformação não pude me furtar a lembrar da centenária “A Metamorfose”. Uma das mais famosas frases da literatura dá inicio direto à história de um personagem que não é mais humano desde o primeiro parágrafo: “Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.
As análises para esta obra são riquíssimas, principalmente se compreendida a relação do autor com o pai, explicitada pelo próprio em carta nunca entregue, porém tão acessível quanto qualquer outra obra do autor atualmente.
Franz Kafka tinha uma relação de amor e ódio com o pai, e se sentiu sempre inferiorizado pela simples presença do mesmo. A angústia cravada no autor é como a maçã que o pai de Gregor Samsa lhe atirou.
Kafka não cita em qual inseto especificamente se metamorfoseou Samsa, porém, pela descrição pormenorizada, há o consenso de que é uma espécie de barata. Em uma cena o pai começa a atirar-lhe maças, e uma delas se crava nas costas do inseto com uma dor pungente, prostrando-lhe como que pregado ao chão. Como todos tinham um misto de medo e asco de Samsa agora, a maçã permaneceu ali. Como o amalgama negativo de Kafka em relação ao pai.
Eis a situação de Gregor Samsa, sustentáculo de uma família inteira, pai, mãe e irmã. Que só mantiveram o inseto ali na esperança de que o quadro se revertesse. Mas com o passar do tempo, ao terem que se mexer para se sustentar, e após acostumarem-se com a presença a ser evitada, irrompe-se sobre o inseto a ira dos mesmos. Aquele que um dia lhes proveu hoje além de inútil é um grande obstáculo, que não fica quieto em seu lugar, aparece pelas janelas, assustando os inquilinos que a família arrumou para se sustentar.
A história se arrasta neste misto de sentimentos, de amor e ódio, e finalmente de liberdade quando o grande inseto, já abandonado no quarto como uma mobília velha qualquer morre.
Durante o desenrolar da história não só a percepção dos outros quanto a Gregor passa para a de coisa, como a de si mesmo também. Impossibilitado cada vez mais de exercer movimentos simples a um humano ele passa a agir e “pensar” definitivamente como inseto, ter percepção de inseto, quando descobre como se locomover para recuar, que pode andar pelas paredes sem cair ou que tipo de alimento satisfaz seu organismo. Ele também não pode compreender a fala das pessoas. Totalmente apartado de sua humanidade. Como joão. Como muitos “joãos” por aí.
Em nosso mundo de dedicação, entrega, compromisso com uma vida que gira em torno de um sistema financeiro, que nos adestra sem precisar de coerção física alguma para extrair de nós esses sentimentos, “apenas” com uma ideologia pairante e o enquadramento necessário (ou seja, definição de espaços, posturas, funções repetitivas, imposições pouco ou nada questionáveis) é muito fácil perder a nós mesmo e ainda atrapalhar os outros. Tragá-los juntos para a mesma miséria.
Isso acontece quando um superior, não necessariamente o patrão, consegue extrair o máximo de alguém que recebe o mínimo em troca. Mas por seu senso virtuoso, o que ele denomina de uma ética pessoal, mesmo nas mais difíceis condições este honrado trabalhador não deixa que as coisas escapem ao seu controle, não abaixa a cabeça, e prossegue vivendo “radiante” sua vida difícil, todavia honrada!
Isso acontece quando enchemos nossos filhos de mimos, com o fruto de nosso trabalho árduo, e os mantemos presos numa jaula de conforto, sem deixá-los ver mais que isso. Era justamente o que fazia Gregor, amputava sua própria família; se entregando a um chefe que vai a sua casa porque ele não compareceu ao trabalho, não por estar preocupado com sua saúde, mas pelo que sua falta pode ocasionar na produtividade.
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