Artigo
Do Humor Odioso À Política Do Bom Humor Como Resposta Ética
Do humor odioso à política do bom humor como resposta ética, por Ana Laura Prates Pacheco
A criação do discurso do ódio, entretanto, envolve uma lógica do coletivo, quer dizer, agencia-se essa paixão e coloca-a a serviço do exercício da dominação, ou pior, da eliminação daquele que, a partir de então, torna-se o inimigo.
Por Jornal GGN -22/04/2019 Compartilhar
Do humor odioso à política do bom humor como resposta ética
por Ana Laura Prates Pacheco
O humor e o discurso de ódio
Poderia o humor fomentar o discurso de ódio? O termo humor pode ser usado para falar de várias e diversas manifestações que possam provocar o riso individual ou coletivo. O humor, entretanto, é algo bem mais amplo, que diz respeito de modo muito geral, a um estado de ânimo. A Psiquiatria chegou a transformá-lo em patologia, e o classificou em diversos “transtornos de humor”.
Do ponto de vista da Psicanálise, desde Freud, podemos diferenciar algumas situações que nos fazem rir, que parecem ser semelhantes e que, na realidade, são estruturalmente muito diferentes. Por exemplo, o que hoje em dia é chamado comumente de humorismo – curiosamente algo que criou a profissão dos humoristas – seria mais bem alinhado ao que Freud chamou de cômico, diferenciando-o do chiste (Witz em alemão), ou seja, o trocadilho, a palavra espirituosa, a piada de duplo sentido.
Muito resumidamente, poderíamos dizer que o cômico tem uma estrutura dual, opera pela via da identificação imaginária com o outro, ainda que seja pela estratégia da agressividade. Dessa forma, o riso do cômico é mais universal: todos podem rir das palhaçadas dos “Trapalhões” ou do “El Chavo del Ocho” (Chaves) pois todos nós nos identificamos mais ou menos com o papel ridículo deliberadamente exposto. É como se pudéssemos, por alguns momentos, nos aliar ao nosso Supereu sádico e, ao invés de sofrermos com seu sadismo, rirmos de nossa condição de submissão. A Comédia na Grécia antiga era o gênero teatral mais popular e satírico – sobretudo em relação aos poderosos –, operando justamente com a estrutura do engano para provocar o riso.
A distorção ocorre quando essa aliança sádica passa a ser um instrumento para o exercício de poder, humilhação e dominação em relação ao outro. Nesse caso, rir do outro humilhado, ainda que para não entrar em contato com o próprio traço de fragilidade, passa a ser uma perigosa ferramenta de exercício de intolerância e ódio.
No caso do chiste, a estrutura é ternária, já que a linguagem está presente, intermediando a identificação imaginária. Freud o aproxima das outras formações do inconsciente, como os sonhos e os lapsos. É por isso que o chiste é menos universal: é preciso pertencer à paróquia para compreendê-lo, como no caso das famosas piadas internas. Isso porque no chiste, há sempre um jogo com as ambiguidades da língua, as sonoridades, as gírias, o mal entendido. Operando deliberadamente com essas características, o riso vem de um efeito de sentido inesperado e inédito. Sempre será possível veicular preconceitos e reforçar estereótipos viciados através de chistes, mas aqui temos a mediação da linguagem que, de certo modo, ameniza a violência, oferecendo a ela um tratamento simbólico.
O amor e o ódio, bem como a ignorância – por incrível que pareça – são definidos pela Psicanálise como paixões humanas. Elas fazem parte de nossa constituição e estão mais próximas entre si do que gostaríamos de reconhecer. O problema começa, justamente quando não reconhecemos essa contradição e preferimos jogar no outro todo o mal, inclusive ou principalmente aquele que não queremos ver em nós mesmos. Rejeita-se qualquer traço indesejado e o despeja no outro. A raiz da intolerância está exatamente neste ponto, ou seja, a impossibilidade de lidar com a diferença, com o desconhecido, com aquilo que pode ser estranho exatamente por ser muito familiar. Em geral se odeia no outro aquilo que não se pode aceitar em si mesmo. A criação do discurso do ódio, entretanto, envolve uma lógica do coletivo, quer dizer, agencia-se essa paixão e coloca-a a serviço do exercício da dominação, ou pior, da eliminação daquele que, a partir de então, torna-se o inimigo.
O politicamente correto é um tratamento possível?
É preciso reconhecer que o chamado politicamente correto surgiu como uma reação de grupos de pessoas marginalizados e que se sentiam ofendidos por usos da linguagem que os privilegiados consideravam comum. Nesse sentido, ele foi muito bem vindo, e isso por duas razões: Em primeiro lugar, porque é preciso sempre escutar o outro e se colocar em seu lugar. É possível que sua piada perca a graça se você se colocar no lugar de quem é o alvo, se sua intenção realmente não for destrutiva. Em segundo lugar porque o politicamente correto colocou na mesa a difícil questão dos limites do controle da linguagem e, mais especificamente, do humor – para voltarmos ao tema. É fácil demonizá-lo como uma camisa de força para a liberdade de expressão. Mais difícil é interrogar com honestidade a série de paradoxos que ele nos apresenta. E talvez ainda mais difícil seja a pergunta que ele nos impõe: até que ponto estamos dispostos a ceder nossos privilégios para não ferir ou agredir o outro que se encontra em uma situação desfavorecida, seja por razões históricas, econômicas, políticas, sociais e, até mesmo biológicas? Se o discurso racista, por exemplo, criou a noção de raça, não deveríamos combate-lo também pela via do discurso?
Isso posto, é importante lembrarmos, entretanto, que a língua é indomável e sempre rebelde em relação à lei, à norma culta e, inclusive, ao politicamente correto. Ninguém é o Amo da linguagem e querer se colocar nessa posição revela sempre mais ou menos uma impostura. E o humor, evidentemente, é um dos agentes da transgressão estrutural que denuncia essa impostura.
Mas atenção, pois militar em favor do politicamente incorreto como modo de tratamento do politicamente correto é um grande equívoco. Não se combate o Amo da linguagem reivindicando o lugar de Amo dos amos. O lugar de Amo, aliás – esse que pode reforçar preconceitos e segregações por sua própria posição discursiva, independente de seus enunciados –, costuma ser esteticamente duvidoso, eticamente questionável e trazer consequências políticas nem um pouco engraçadas. Do meu ponto de vista, não se trata de uma questão sentimental, como a noção de empatia – aliás, estranha à Psicanálise – faria supor, mas de uma posição subjetiva que apaga o outro em sua diferença radical. O Amo dos amos, ou seja, aquele que quer ser o fiscal do fiscal da linguagem, e que milita pela total liberdade de expressão – como se ela existisse – sempre procura reconhecer um traço no outro que permita reafirmar sua suposta superioridade.
A dimensão transgressiva do humor
Falemos, então, da dimensão transgressiva do humor, bem entendido aqui como bom humor, ou seja, certa disposição para rir das próprias mazelas e aceitar não passivamente a dimensão trágica da vida, sem, entretanto, dramatiza-la. Esse estado de espírito é, frequentemente, o resultado de uma experiência psicanalítica bem sucedida, e é um belo antídoto contra o mau humor crônico das piores neuroses. A rebeldia transgressiva do humor é espontânea e goza de uma liberdade criativa que implica em se deixar levar pelas inúmeras possibilidades que a linguagem nos oferece para tratar as tais mazelas. A isso Lacan chamava de ser tolo, cair como um patinho, não ter medo do ridículo, não querer ser mestre da linguagem. Nesse ponto específico é que, como psicanalista, posso interrogar o politicamente correto. Veja que, fundamentalmente, essa posição ética implica em algo muito sutil, mas que faz toda a diferença: rir de si mesmo, ou seja, incluir-se na própria piada. A capacidade de rir de si é realmente um conquista inestimável, que implica num tratamento radical do próprio narcisismo.
A dimensão irônica da linguagem é realmente um de seus aspectos mais notáveis e talvez seja aquele com o qual a Psicanálise tenha mais intimidade. É possível que não seja excessivo afirmar que a interpretação psicanalítica opere com a ironia. Estou usando aqui o termo ironia num sentido próximo ao socrático, ou seja, o do interrogante, aquele que opera a partir da douta ignorância, que poderá provocar o aparecimento de um saber alegre, que Lacan chamava de gaio saber. Essa ironia socrática é solidária daquele aspecto espontaneamente transgressor do humor ao qual me referi anteriormente. Ao humor preconceituoso do Amo da linguagem, podemos tentar responder com a arma secreta da ironia, uma importante arma política, inclusive. É com a ironia que podemos fazer claudicar a impostura e o cinismo dos que reivindicam a liberdade absoluta – seja ela econômica, social ou individual – de resto, impossível.
Essa posição ética do Amo dos amos é muito diferente daquela que sustenta o rir de si mesmo, reconhecendo suas fragilidades e idiossincrasias. É muito diferente de suportar que, no fundo, somos todos risíveis e que podemos rir um dos outros à vontade, sem nos magoar, ou ficar com mi mi mi, como se diz hoje em dia. O problema, portanto, não é o humor propriamente dito, transgressivo por definição. O problema é seu agenciamento pelo discurso do ódio, que busca sempre o lado mais frágil para exercer seu sadismo mal camuflado. O que fica, entretanto, camuflado por traz do discurso que reivindica a plena liberdade de expressão, é que ela não existe.
Assim como a linguagem é estruturalmente indomável, ela é, do mesmo modo, estruturalmente limitada. Não se pode dizer tudo, mesmo que se queira, ou pior, que se ordene. A palavra é prata, o silêncio é outro, diziam os antigos. O imperativo de tudo dizer pode ser tão nocivo quanto a mordaça. Tenho recolhido, em minha clínica, as consequências do aumento do discurso do ódio e da explicitação do racismo, da misoginia e do preconceito de modo geral. Seus efeitos podem ser devastadores, sobretudo se produzirem o silenciar sistemático e paralisante, que produz sintomas e inibições. O fenômeno do auto preconceito e da negação da origem, da orientação sexual e da deficiência também é uma das faces mais terríveis da segregação. Mas também é muito interessante acompanhar os efeitos da escuta e as saídas construídas para sair dessas posições.
Acho que a Psicanálise criou um discurso extremamente eficaz para produzir uma mudança de posição subjetiva que permite incluir o outro em sua diferença, e rir de si mesmo em sua mesmice. A ética do bem dizer, sustentada pela escuta sem condescendência do psicanalista, só pode ser compatível com a política do bom humor. O discurso do Psicanalista é incompatível com a segregação promovida pelos totalitarismos e com a concentração promovida pela aceleração do capitalismo de consumo atual. Mas não creio que esteja ao seu alcance evitar conflitos políticos e/ou religiosos. Acredito, sim, que podemos ajudar a interpretar as ocorrências de mal estar na civilização, sobretudo quando elevadas à dignidade de sintoma. Acredito que o discurso do ódio foi elevado a essa dignidade, atualmente, e enquanto Psicanalista, me disponho a interpretá-lo.
Pra não dizer que não falei das redes
As redes sociais são um fenômeno tão recente e complexo que acredito que ainda vamos precisar de algum tempo para ensaiar uma análise consistente e não moralista ou alarmista desse fenômeno. Algumas coisas, entretanto, podem ser ditas. Uma delas, inclusive, muito íntima à Psicanálise: a noção de Semblante e sua relação com o Real, ou seja, aquilo que a linguagem não alcança.
Como Psicanalista, considero bastante ingênua a ideia de que, nas redes sociais todo mundo é feliz, belo, tem as melhores férias, os filhos mais lindos, o casamento mais perfeito, etc. Essa é a parte mais superficial do fenômeno, sobretudo porque todo mundo sabe que é mentira. É como se fosse só um jogo cômico, e para os mais inteligentes, chistoso – para usar um pouco de ironia!
O mais constrangedor, na verdade, é perceber o que cada um escolhe para mentir. Aí aparece algo impossível de camuflar: a verdade mentirosa de cada um. O modo como cada um se vira para postar sua mentirinha é o que revela sua verdade: as palavras que escolhe, as imagens, o tom, a enunciação e até mesmo o que compartilha. Não há como disfarçar, por exemplo, se você verificou ou não a fonte da informação que compartilhou, depois que ela se revelou fake news. Não há como camuflar a estética e a deselegância que denuncia sem dó nem piedade uma posição subjetiva e uma ética.
Julian Assange em seu livro Cypherpunk o explicita: o menos perigoso na internet é o conteúdo, as informações mais ou menos obscenas que compartilhamos – como o que comemos hoje no café na manhã, por exemplo. O pior, mais sério e mais grave, é como o fazemos. Em tempos de exposições obscenas, o menos relevante são os fatos supostamente privados que se tornam públicos e o mais impróprio é a estética imoral com a qual esses fatos se m. Esse detalhe é fundamental para tentarmos acompanhar o quanto as redes podem ser um terreno fértil para o crescimento do discurso autoritário. O outro aspecto muito importante, do meu ponto de vista, é o anonimato. Somos muito valentes quando não precisamos nos responsabilizar pelo que dizemos e pelas ofensas que fazemos. O fenômeno de grupo que Freud chamou de “psicologia das massas” pode ser hiperbolizado na internet, e isso é potencialmente bastante perigoso.
Ainda não temos como prever o alcance dessa ameaça que pode, entretanto, criar uma nova forma de fascismo. Mas ainda acredito em uma frequência irônica, chistosa e bem humorada nas redes sociais.