Artigo
Ética E Manipulação Genética
Ética e manipulação genética
por Emilie Guyonnet
5 de junho de 2009
Os avanços na pesquisa genética estão permitindo identificar a predisposição a doenças e a intervir nos genes responsáveis ainda na fase de gestação. Estas conquistas das ciências tornam possível o que antes era ficção cientifica: a eugenia, ou seja, a seleção genética de acordo com valores e critérios de cada cultura
Imaginemos um casal capaz de transmitir a seus filhos a predisposição genética a uma doença grave. Deve-se autorizar um diagnóstico pré-natal que permita rastrear a anomalia no feto ainda no útero? E no caso de um embrião gerado em fertilização in vitro, pode-se recorrer a um diagnóstico pré-implantatório?
Para responder a essas questões, é preciso debater a bioética na pesquisa embrionária.
“Polêmica, que polêmica? Todos os especialistas estão de acordo”, contemporizava, em abril de 2008, François Thépot, então diretor-adjunto da Agência de Biomedicina da França.
Naquele período foram realizados diagnósticos pré-implantatórios (DPI) nas cidades francesas de Estrasburgo e Montpellier para evitar o nascimento de crianças com predisposição genética a câncer de cólon. A Agência de Biomedicina havia acabado de r um estudo que justificava os fatos1: havia quase 100% de chance de alguns daqueles futuros indivíduos desenvolverem essa doença aos 40 anos.
O documento preconizava também um aumento na predisposição a outros tipos de câncer e a abertura de novos centros de DPI para dar conta da demanda crescente.
“Antes podíamos assumir conscientemente o risco de transmitir essa doença a uma criança porque ela parecia administrável, apesar de se prever uma intervenção no cólon aos 29 anos”, explica um dos pais cuja demanda de DPI foi aceita em razão da predisposição genética. “Mas, atualmente, eu tenho reincidências regulares da doença, o que os médicos consideravam improvável há pouco tempo. Aqueles que acham o DPI um recurso abusivo são pessoas cuja saúde vai bem. As descobertas recentes rastreiam riscos futuros de maneira muito eficiente.”
A primeira revisão da lei de bioética francesa, em 2004, permitiu o uso desse mecanismo para beneficiar pessoas que sofriam da doença de Huntington, uma desordem neurológica rara que aparece, em geral, entre os 30 e os 45 anos.
A lei anterior, de 1994, legalizava o processo depois de oito anos de moratória, mas era menos precisa: evocava afecções “de particular gravidade, incuráveis a partir do diagnóstico”.
Esses limites explicam por que o DPI ainda é restrito a uma parte ínfima dos nascimentos na França: cerca de 30 para cada 800 mil.
No entanto, os diagnósticos avançam muito mais rápido que os tratamentos. Nos últimos 20 anos, cerca de 40 predisposições genéticas a câncer foram identificadas. É legítimo incluí-las na lei de bioética? O Reino Unido, que possui uma das legislações mais liberais da Europa, acha que sim. E responde afirmativamente até mesmo para predisposições de pouco risco. O país realizou recentemente o primeiro DPI para evitar a transmissão do gene mutante BRCA1, que implica risco de câncer de mama de 50% a 70% aos 70 anos.
Na Europa, contudo, há países que estão na mão contrária, como a Irlanda, Alemanha, Áustria, Suíça e Itália. Para uns, o DPI é proibido pelo peso do catolicismo, e para outros, pelo passado eugenista (ler box).
Na França, as regras do jogo mudaram com a eleição de Nicolas Sarkozy. O presidente escolheu como conselheiro para questões de pesquisa e saúde, Arnold Munnich, chefe do serviço de genética do hospital Necker, em Paris, um dos três centros autorizados a praticar o DPI no país. Sua nomeação surpreendeu, porque ele defende a prudência frente ao determinismo genético. “O que sabemos com certeza de tudo isso? Sabemos que o sujeito herdou um gene, mas o fato de ter herdado esse gene é suficiente para afirmar que terá a doença? Não. Em numerosos casos, sabemos que a doença não se desenvolve apesar da presença do gene2”, questiona ele.
Confronto de valores
Munnich também se opõe à pesquisa embrionária: “Minha concepção de vida faz com que eu prefira a destruição de um embrião à sua instrumentalização como fábrica de órgãos por um projeto de pesquisa3”.
Do outro lado dessa posição conservadora estão os vanguardistas que controlavam a Agência de Biomedicina, criada pela revisão legislativa de 2004 para regular as atividades relativas à genética, à procriação humana e aos transplantes.
Segundo o antigo ministro da Saúde, Jean-François Mattei, a agência passou por um “desvio científico”. “Alguns pesquisadores entenderam que tinham uma alavanca à disposição e convenceram os não-médicos dirigentes que era preciso avançar.”
A diretora da Agência de Biomedicina na gestão de Jacques Chirac não foi mantida pelo atual Ministério da Saúde. “Temos receio que seja um golpe contra a continuidade das pesquisas”, afirmou, à época da demissão, Stéphane Viville, membro do colégio de especialistas para a pesquisa embrionária da agência e chefe do serviço de biologia da reprodução no centro de DPI de Estrasburgo. Nomeada em julho de 2008, a nova diretora, Prada Bordenave, assumiu posições muito particulares: “Em matéria de diagnóstico de câncer, foi estabelecido um consenso profissional de reservar o DPI às pessoas que já perderam um filho”, declarou.
O debate é legítimo, pois escolhas individuais têm impacto no coletivo. Um jovem cineasta com a síndrome de Marfan – doença do tecido conjuntivo que causa complicações cardíacas de gravidades variáveis – se revolta ao ver sua doença aceita pelo centro DPI de Estrasburgo. Ele argumenta que “doença genética e felicidade não são antinomias4” e se sente injustamente adicionado à lista de doenças diagnosticadas nos três centros DPI, da a cada ano pela Agência de Biomedicina.
Em Estrasburgo, a vanguarda médica é também vanguarda social. A equipe reivindica a liberdade de interpretar a lei e aceita as demandas de DPI para a anomalia que implica o nanismo, a qual, no entanto, não é associada a nenhuma patologia física ou mental. “As pessoas que nos procuram sabem o porquê. Os anões são submetidos a uma grande pressão social”, justifica Viville, que explica ter como ética pessoal atribuir a mesma importância aos elementos psicológicos e médicos. É papel da medicina prevenir discriminações sociais que, ao mesmo tempo, ajuda a legitimar?
Um giro internacional nos permite ver a dimensão do problema. Na Índia e na China, onde o nascimento do sexo feminino representa uma deficiência social, o DPI é utilizado para selecionar embriões do sexo masculino, embora essa prática seja proibida por lei. Nos Estados Unidos, o limite do campo da medicina também foi ultrapassado, mas em duas direções opostas. De um lado, as demandas do “designer baby” (bebê perfeito): “Dezenas de centros de procriação americanos propõem a pessoas que nunca tiveram uma doença potencialmente hereditária fazer o DPI para garantir que o embrião seja portador do menor risco possível”, explica Jacques Milliez, membro da comissão de ética e direito da Academia de Medicina. Do outro lado, alguns casais recorrem ao DPI para escolher um embrião portador da deficiência, como o nanismo ou a surdez, para que no futuro a criança compartilhe as mesmas condições com seus pais! Essas demandas são aceitas por 3% dos centros DPI americanos.5
O caminho é a fecundação in vitro
Alguns pais e cientistas parecem esquecer um pouco rápido demais que as técnicas têm suas contrapartidas.
O DPI obriga que a fecundação seja in vitro para que se possa escolher entre diversos embriões. Para tanto, é necessário seguir um tratamento hormonal, desaconselhado a mulheres que apresentam um risco elevado de câncer de mama ou de ovário. A taxa de malformação fetal é quase duas vezes mais elevada em crianças que nascem da fecundação artificial batizada “Intracytoplasmic sperm injection” (ICSI: em português, fecundação in vitro por microinjeção espermática) que em crianças concebidas naturalmente (5,9% contra 3,6%).6
A fecundação in vitro também é descrita por várias mulheres como um verdadeiro “percurso de combatente”. As chances de engravidar são de 15% a 20% e, na França, o seguro saúde, em geral, reembolsa até cinco tentativas, cada uma com um custo entre 4 mil e 6 mil euros.
É um grande filão de mercado: para além do DPI, a indústria da procriação assistida exibe números da ordem de US$ 3 bilhões por ano em todo o mundo.7 Na França, nascem anualmente cerca de 20 mil crianças concebidas por diferentes técnicas de procriação assistida.
“A atividade está em alta em razão do aumento da idade da primeira gravidez. É urgente refletir sobre essas escolhas da sociedade porque se trata de um processo difícil, custoso e que não está isento de perigo”, sublinhou a nova diretora da Agência de Biomedicina.
Essa aceleração ocorre em nome de uma “modernidade” e de uma liberdade de escolha inscritas na herança dos combates feministas, em particular no debate sobre o aborto. “Uma trapaça intelectual”, denuncia Gisèle Halimi, presidente da associação Escolha. “Esse contrassenso não é inocente. A obstinação procriadora é muito lucrativa para os médicos, advogados especializados e intermediários. Sob a máscara da modernidade e do desejo da infância poetizada, lembremos das mulheres cujo papel social é ser dona-de-casa.”
A pesquisa biomédica não tem do que reclamar. Os embriões descartados após um DPI são utilizados para modulação de doenças e testes de novos medicamentos.
Quanto aos embriões excedentes da fertilização in vitro, eles permitem melhorar os conhecimentos sobre as células-tronco embrionárias, que suscitam esperanças para o tratamento de doenças cardiovasculares e da diabete, em particular. O primeiro estudo clínico com um ser humano submetido a um tratamento a partir de células-tronco foi do em janeiro deste ano pela empresa Geron, nos Estados Unidos.
Clonagem terapêutica
A técnica de clonagem terapêutica é, no entanto, pouco dominada e depara com um obstáculo maior: necessita de ovócitos – as células sexuais femininas – em grandes quantidades. Para tanto, os pouco gloriosos mercados transnacionais passaram a recorrer às mulheres jovens e pobres.
A pesquisa também gera outros resultados alarmantes. Um exemplo é a bombástica fraude do pesquisador sul-coreano Hwang Woo-suk que, em 2004, fingiu ter conseguido realizar a primeira clonagem humana. Além de alterar resultados, ele também foi acusado de desvio de verba, notadamente para pagar doadoras de ovócitos.
Para contornar o problema, a Grã-Bretanha, primeiro país do mundo a legalizar a clonagem terapêutica em 2001, autorizou a criação de embriões e passou a incentivar as mulheres a doarem seus ovócitos à ciência, independente de qualquer tratamento de fertilidade.
O objetivo certamente permanece terapêutico, mas também está ligado ao pedido de patentes, como explica Fergus McKenzie, responsável pelo programa no ITI Life Sciences, fundo pela inovação das ciências da vida, criado com apoio do governo escocês.
“Nossa missão é gerar direitos de propriedade intelectual para ter uma indústria e uma pesquisa acadêmica fortes na região.” Em razão de investimentos importantes, a Escócia se tornou o primeiro polo europeu de pesquisa de células-tronco.
Em nível mundial, os Estado Unidos lideram os royalties nessa área, apesar das restrições impostas sob as presidências de Bill Clinton e George W. Bush e eliminadas por Barack Obama. Em 1998, o pesquisador James Thomson requereu uma patente extremamente vasta, que abarcava o conjunto das descobertas terapêuticas a partir das células-tronco embrionárias humanas. Sem perder tempo, a empresa Geron comprou os direitos exclusivos. “A equipe de James Thomson, que trabalhava com fundos privados, levou ao conhecimento do grande público as células-tronco enquanto nós, pesquisadores, já as conhecíamos há muito tempo8”, sublinha Nicole Le Douarin, embriologista, membro da Academia de Ciências.
O Escritório Europeu de Patentes rejeitou, em 25 de novembro de 2008, a validade dessa patente americana, que também passa por uma revisão nos Estados Unidos após contestações pelo fato dos métodos descritos já serem conhecidos pela comunidade científica.
No final de 2007, os parâmetros desse debate foram revolucionados por uma equipe da Universidade de Kyoto.
Os pesquisadores japoneses conseguiram fazer com que células adultas voltassem a ser células embrionárias (chamadas pluripotentes induzidas).
Caso o método seja confirmado, fornecerá uma alternativa à utilização de células embrionárias. “As duas pesquisas poderão alimentar-se mutuamente. Os pesquisadores dizem que é muito cedo para abandonar as pesquisas com células-tronco embrionárias”, declarou Prada Bordenave.
Em 2003, os pesquisadores chineses já haviam colocado em discussão uma alternativa às células-tronco, que seriam os “cíbridos”, embriões híbridos dotados de material animal, mas também de DNA humano. No entanto, muitos cientistas permanecem céticos quanto a essa alternativa porque ela apresentaria muitas incompatibilidades. A Grã-Bretanha, que não negligencia nenhuma pesquisa, autorizou essa técnica em 2008. Resta esperar que a competição se desenrole em benefício dos pacientes.
*Emilie Guyonnet é jornalista.
1 Dominique Stoppa-Lyonnet, “Diagnóstico pré-natal, interrupção médica da gravidez, diagnóstico pré-implantação e formas hereditárias de câncer”, Agência de Biomedicina e Instituto Nacional do Câncer, Paris, abril de 2007; ler “Controvérsias em torno da extensão do diagnóstico pré-implantatório”, Le Monde, 26 setembro de 2006.
2 “O impacto da genética em tratamentos”, Universidade de Todos os Saberes, Paris, 14 de janeiro de 2004.
3 Entrevista com Jean-François Picard, 1° de março de 2003.
4 “O direito de viver, mesmo com a síndrome de Marfan”, Le Monde, 20 de fevereiro de 2007.
5 “Estudo testa mapeamento genético em pré-implantatório”, Centro de Genética e Políticas Públicas, Johns Hopkins University, Baltimore, 20 de setembro de 2006.
6 “Avaliação da fecundação in vitro com micromanipulação”, Alta Autoridade de Saúde, Paris, dezembro de 2006.
7 “Economista avalia o negócio da fertilidade”, New York Times, 28 de fevereiro de 2006.
8 Nicole Le Dourain, “As quimeras na utilização das células-tronco”, Canal Academia, 4 de março de 2007.
Fonte:
https://diplomatique.org.br/etica-e-manipulacao-genetica/