E-cigarette e tabaco aquecido são apresentados a diversas faixas etárias como alternativas de risco reduzido à saúde nas redes sociais e na mídia corporativa, mesmo sem comprovação científica
Ela perdeu as contas de quantas vezes revirou o quarto e a mochila do filho em busca de um pequeno aparelho que poderia muito bem passar de forma despercebida, como um pen drive ou uma caneta. Encontrava, descartava e, poucos dias depois, outro aparecia. Foram meses de procuras, broncas e longas conversas desde que Maria Helena descobriu que Gabriel, aos 15 anos, fazia uso do vape – como são conhecidos os cigarros eletrônicos.
Apesar da preocupação, Maria sabia pouco sobre os riscos dessa tecnologia. O processo de combustão do cigarro comum é substituído por uma bateria recarregável que aquece uma substância líquida que, geralmente, contém nicotina e aditivos de sabor, produzindo vapor para ser inalado.
Com uma infinidade de gostos que remetem à infância, como algodão doce, chiclete, morango, manga e chocolate, os preferidos de Gabriel, o dispositivo eletrônico se popularizou nos últimos anos e se concretiza como uma epidemia entre jovens em diversos países. Segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, o CDC, na sigla em inglês, 3,6 milhões de estudantes de ensino fundamental e médio usam cigarros eletrônicos.
A prática, que à primeira vista parece inofensiva, despertou atenção internacional após usuários do vape começarem a apresentar graves lesões pulmonares causadas pelo uso dos dispositivos eletrônicos. Conforme monitoramento do CDC, foram registradas 2.807 internações e 68 mortes nos Estados Unidos até fevereiro deste ano, mês em que o último boletim a respeito foi divulgado.
A doença chegou a ganhar um nome próprio: evali, sigla para “E-cigarette or Vaping product use-Associated Lung Injury” (lesão pulmonar associada ao uso de produtos de cigarro eletrônico ou vaping, em tradução livre).
Até o momento, o CDC avalia que o uso de líquidos contendo tetrahidrocanabinol (THC), substância psicoativa encontrada nas plantas do gênero cannabis e o acetato de vitamina E estão ligados à maioria dos casos. Ainda assim, o centro afirma que as evidências não são suficientes para descartar a contribuição de outros produtos químicos presentes nos e-cigarettes para o desenvolvimento das lesões.
E a preocupação de Maria Helena crescia ao passo que as notícias sobre as vítimas da Evali se tornavam mais frequentes. Morando em New Jersey, nos Estados Unidos, onde a venda dos dispositivos é autorizada apenas para maiores de 21 anos, a brasileira descobriu que Gabriel vaporou a primeira vez no banheiro da escola.
Ela pesquisou sobre o assunto e se deparou com dezenas de outros pais, igualmente assustados com a proliferação dos e-cigarettes, mais conhecidos como Juul, nas instituições de ensino. O “apelido” é inspirado no nome da fabricante dos dispositivos, a estadunidense Jull Labs Inc.
Durante o longo caminho percorrido, a mãe se tornou uma “investigadora”. Acompanhou de perto ações em escolas que, segundo ela, têm revistado crianças e adolescentes para evitar que escondam os e-cigarettes em blusas com espaços criados exatamente para isso ou em pacotes de salgadinhos com fundo falso comprados pela internet com o mesmo objetivo.
“[O dispositivo] Invadiu as escolas. Para os adolescentes, não é uma alternativa. É o início deles no tabagismo”, conta a mãe.“Mesmo que meu filho não venha um dia a fumar cigarro de papel, ele está viciado na nicotina. Seria um vício que ele não teria se o cigarro eletrônico não existisse”, prossegue Maria Helena.
Um ano e meio após conflitos frequentes em casa, foi uma insistente tosse que impôs a pausa na prática cotidiana de Gabriel, atualmente com 16 anos. Já durante a pandemia do coronavírus, os pais o levaram ao hospital, com receio de que fossem sintomas da covid-19.
O jovem recebeu o diagnóstico de bronquite crônica após o atendimento médico e, sem saber o quanto o cigarro eletrônico impulsionou o desenvolvimento da doença, conseguiu interromper a dependência com muito esforço.
“Risco Brasil’
As consequências na saúde pública causadas pelo uso do dispositivo não estão distantes do Brasil. Segundo dados obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI), apenas de 18 de novembro de 2019 a 17 de abril de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recebeu sete notificações de brasileiros com evali. As informações mostram que apesar da comercialização dos Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs) ter sido proibida pelo órgão em 2009, a aquisição é uma realidade no país. Centenas de opções podem ser encontradas com uma rápida busca no Google.
Das sete pessoas que desenvolveram as lesões nos últimos meses, três precisaram ser internadas e outras duas receberam alta com sequelas. Os registros foram feitos em São Paulo, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Entre os quatro homens e três mulheres, as idades variam de 21 a 41 anos. Esses são os casos em que médicos notificaram o atendimento e a evolução clínica dos pacientes por meio de um formulário criado pela Anvisa, o que não exclui a possibilidade de outras ocorrências não terem sido registradas ou identificadas como evali, ou seja, as já famosas subnotificações.
O número que, por enquanto, pode ser considerado inexpressivo, tem potencial de aumentar significativa e rapidamente. Em meio ao debate sobre o uso dos dispositivos em diversos países, as fabricantes têm pressionado agentes públicos pela comercialização por aqui. A Anvisa, em resposta, realizou um painel técnico-científico para discutir a autorização da venda no país em 2018, com a participação de pesquisadores nacionais e internacionais, entidades envolvidas na redução do tabagismo e da indústria.
De um lado, os fabricantes dos DEFs anunciam que os produtos são menos prejudiciais ao corpo humano e podem auxiliar os fumantes a parar de fumar. Do outro, instituições de saúde exigem cautela e avaliam que ainda não há estudos suficientes para sustentar o argumento do setor, posicionamento que fundamenta a proibição determinada pela Anvisa há mais de uma década.
Após a realização de duas audiências públicas no ano passado, nas quais a agência recebeu mais de 350 documentos classificados como evidências técnico-científicas que estão sendo analisadas por um grupo de pesquisadores externos, o tema foi incluído na agenda regulatória 2017-2020. As etapas culminarão na elaboração de um relatório de análise do impacto regulatório, a ser aprovado pela diretoria do órgão.
Ciência entre aspas
A indústria não está inerte nesse processo. A Philip Morris International (PMI), dona das marcas Marlboro e L&M, segue vangloriando-se de produzir um “Futuro Sem Fumaça” – nome da campanha institucional divulgada internacionalmente desde 2018. Ao desenvolver o que alega ser um “portfólio de produtos sem fumaça e menos nocivos à saúde”, a empresa que vende tabaco e derivados em mais de 180 países, e é a maior companhia internacional de cigarros do mundo, defende que os produtos de risco reduzido substituam cigarros de papel “tão rapidamente quanto possível”, conforme afirma Mirek Zielinski, presidente de ciência e inovação da PMI.
Não por coincidência, o Brasil ganhou uma campanha própria em meio à discussão da Anvisa. Logo na primeira linha do site oficial “Precisamos Falar” a Philip Morris assumia o problema, só para depois sugerir uma “solução” questionável: “Parar de fumar é sempre a melhor opção, é a única sem risco”, dizia o texto, seguido por uma ponderação. “Ainda assim, milhões de adultos continuam fumando. É urgente o debate sobre alternativas de risco reduzido”.
O site saiu do ar faz pouco tempo. Coincidência ou não, logo depois da nossa reportagem ter entrado em contato com a assessoria da megaempresa e com a Anvisa. De qualquer forma, toda a construção de discurso que sustentava o conteúdo do “Precisamos Falar” pode ser encontrado aqui.
Argumentando que a combustão do cigarro comum é a grande responsável pela produção dos altos níveis de substâncias químicas que fazem mal à saúde, a campanha apresenta o IQOS, o dispositivo de tabaco aquecido. Ele inclui uma lâmina eletrônica, que aquece uma vareta de tabaco e libera um vapor com o sabor do produto. Diferente dos demais produtos eletrônicos, contém tabaco em vez de nicotina líquida. Os chamados “sticks” compatíveis com o IQOS são produzidos apenas pela Marlboro HeatSticks e pela marca Heets.
O site também elencava preconceitos dos quais os fumantes dos cigarros de papel seriam vítimas devido “ao vício em nicotina” e o “forte cheiro do tabaco”, malefícios que teriam “fim” com o IQOS – apesar de a empresa negar, a sigla é amplamente entendida como um acrônimo para I Quit Ordinary Smoking (eu parei de fumar cigarro comum, em tradução livre).
Logo depois, visitantes eram convidados a assistir a um vídeo, produzido pela Damasco Filmes, com cenas que retratavam as situações em que os fumantes eram julgados e excluídos. Mais uma vez, não custa lembrar: o site, agora, está fora do ar, mas a campanha segue ativa, por exemplo, no canal da Philip Morris Brasil, no YouTube.
Há espaço, inclusive, para que algumas dessas pessoas – ou personagens? – contem histórias pessoais. No site, a foto de “Fernando”, redator de São João da Boa Vista, interior de São Paulo, “que sempre foi engajado em movimentos sociais”, aparecia ao lado da foto de “Luis Fernando”, produtor cultural que trocou “a capital pelo litoral, porque a vida precisa do mar”. A imagem da arquiteta “Cláudia”, que adora filmes clássicos e toca piano, completava o trio. Voluntária social, ela “procura sempre que possível dar apoio a famílias carentes.”
Além das similaridades na estética das fotos de cada um, as diferentes narrativas terminavam com uma linha comum de defesa: de que, como cidadãos, tenham o direito de ter acesso a produtos de risco reduzido.
Entre as “perguntas frequentes” que a empresa se propunha a responder no site, uma é emblemática, “Por que a Philip Morris simplesmente não para de vender cigarros?”.
“Se parássemos hoje, todos perderiam: o consumidor migraria para outras marcas ou para o mercado ilegal, o Estado não arrecadaria e nós não conseguiríamos oferecer produtos de risco reduzido em função de uma proibição regulatória”, respondia a própria Philip Morris, em poucas linhas.
Com a discussão se arrastando na Anvisa, a “Precisamos Falar” ocupou espaços patrocinados nos maiores jornais do país ao longo do ano passado. Além do O Globo, só no Estúdio Folha, da Folha de S. Paulo, são nove matérias sobre as “benesses” do tabaco aquecido, que apresentaram duras críticas à proibição, com direito a banner da campanha brasileira e o logo da “Futuro Sem Fumaça” aparecendo frequentemente na home do jornal.
Já no Estadão, o Media Lab também publicou conteúdo patrocinado na mesma linha. Fernando Vieira, diretor de Assuntos Externos da Philip Morris Brasil, chegou até mesmo a publicar um artigo em defesa do tabaco aquecido na coluna política de Fausto Macedo.
O investimento da empresa faz parte de uma estratégia global. Junto com a mudança de foco institucional, a Philip Morris criou a Foundation for a Smoke Free World (conhecida como Fundação Futuro Sem Fumaça. no Brasil) com sede em Nova York, uma organização “independente” e sem fins lucrativos que objetiva desenvolver pesquisas e fortalecer ações globais contra os impactos à saúde causados pelo tabagismo. O investimento na fundação é de US$ 80 milhões anuais pelos próximos 12 anos.
De acordo com artigo publicado em junho de 2019 pela revista científica The Lancet, a declaração de impostos da fundação colocou em xeque o discurso da “independência científica” ao revelar que a organização não obteve financiamento de outros doadores em 2018, apenas da própria Philip Morris. Um inegável conflito de interesses.
Da doação anual de US$ 80 milhões, US$ 6,46 milhões foram destinados às bolsas de pesquisa e US$ 7,59 milhões em comunicação e relações públicas. O artigo registra ainda que foram contratadas empresas de comunicação com vínculos de longa data com a indústria do tabaco, como a Ogilvy Public Relations Worldwide, que, segundo os autores, atua tanto para promover o tabaco quanto para ocultar os danos à saúde.
Interesses por trás da fumaça
A oferta dos dispositivos eletrônicos parece abrir uma fresta nos consensos científico e de saúde pública internacional sobre limitar o acesso às substâncias nocivas do cigarro há décadas. Mas o que teve força para provocar essa movimentação num debate que parecia morto?
Na opinião de Stella Martins, médica especialista em dependência química com certificação em Controle do Tabagismo pela Universidade Johns Hopkins, os argumentos divulgados pela indústria do tabaco em defesa dos DEF’s são apenas parte de uma estratégia para continuar vendendo. Para ela, a mudança no discurso é uma reação à queda do número de fumantes no mercado global, fruto da Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Controle do Tabaco (CQCT/OMS), que entrou em vigor em 2005.
Primeiro tratado internacional de saúde pública da história da Organização Mundial de Saúde (OMS), a Convenção-Quadro é um instrumento ratificado por 181 países membros da Assembleia Mundial da Saúde, que determina a adoção de medidas intersetoriais contra o tabagismo em diversas áreas, como publicidade, patrocínio, preços e impostos.
Autora do livro “Cigarro eletrônico: o que sabemos?“, publicação que revisou estudos sobre os DEFs, resultado de uma parceria entre a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Instituto Nacional de Câncer (Inca) e Anvisa, Stella sustenta que não há evidência científica que comprove que os produtos eletrônicos causem menos riscos à saúde ou que ajudem fumantes a interromperem o vício.
“Não há um estudo de longo prazo com vários perfis de população que mostrem que esses produtos realmente ajudam na cessação do tabagismo. E, se assim fosse, eles não teriam que ser colocados como produtos de risco reduzido, mas, sim, produtos para o tratamento do tabagismo. Uma medicação e não um produto que fica disponível para qualquer um, inclusive, para quem não fuma. Não seria analisado pela gerência de produtos derivados do tabaco e sim pela Anvisa medicamentos”, argumenta a pesquisadora.
A médica ressalta um aspecto ainda mais grave coberto por um discurso tecnológico e sedutor: Milhares de pessoas que usam o vape estão, na verdade, se submetendo a uma série de outras substâncias tóxicas que representam ameaças tão ou mais graves do que as do cigarro comum. Estima-se que a vaporização do e-cigarette possa atingir 350º, o que segundo Stella, é uma temperatura alta o suficiente para induzir reações e mudanças físicas nos compostos, formando outras substâncias potencialmente tóxicas.
Outro alerta: há, também, a liberação de aerossóis com acetaldeído, outro possível carcinógeno; com acroleína, substância gerada pelo aquecimento do glicerol, que causa irritação na cavidade nasal e danos no revestimento dos pulmões, e nitrosaminas, uma classe de carcinogênicos específicas do tabaco.
Mesmo com a ausência de evidências científicas a longo prazo e questionamentos em relação ao e-cigarette G. Galdino* não se afasta do vape. Dono de cinco aparelhos diferentes, o jovem de 25 anos conta que começou a fumar o cigarro comum aos 14, mas depois que ganhou o primeiro dispositivo eletrônico se tornou um árduo defensor dos DEF’s.
“Virou um hobby. Os equipamentos são legais, com diferentes funções e combinações de sabores. Por dia, eu fumava 30 cigarros. O cigarro eletrônico está o tempo inteiro comigo. A cada dez, quinze minutos, dou um trago e continuo vivendo”.
O jovem ecoa o argumento da indústria de que ao aquecer as substâncias em uma temperatura menor, o monóxido de carbono, fator de risco para infarto do cigarro comum, e os alcalóides do alcatrão, agentes cancerígenos, não são produzidos pelo vape.
Stella Martins reprova a comparação e diz que não existe um produto que libere nicotina que faça menos mal à saúde. “Isso é impossível. Apesar da indústria continuar mentindo, a nicotina traz grandes danos ao sistema circulatório. Predispõe a infartos, derrames. Se tem a nicotina, esse dano vai existir.”
Aposta número um da Philip Morris, o IQOS teve venda autorizada em maio do ano passado pelo Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, após vaivéns e grande pressão do setor. Ao conceder autorização para comercializar o dispositivo, no entanto, o departamento fez a ressalva de que o tabaco aquecido tem um potencial de entrega e vício em nicotina semelhante ao dos cigarros convencionais.
O “uso duplo” dos produtos também já havia sido considerado provável pelo Comitê Científico Consultivo sobre Produtos de Tabaco do FDA em 2018. Eles concluíram que os fumantes provavelmente se tornariam usuários duplos de IQOS e cigarros convencionais a longo prazo, processos que ocorreram no Japão e na Coréia do Norte.
História cruel
Silvana Turci, pesquisadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Cetab/Ensp/Fiocruz), também avalia que as “novas alternativas” fazem parte de uma já conhecida forma de atuar da indústria.
Ela relembra que nas décadas de 1940 e 50, o setor sustentava que o cigarro não fazia mal. Depois, os cigarros com filtro seriam menos nocivos à saúde. Então, os cigarros lights e ultralights apareceram. Nenhuma das opções de fato eram alternativas sem danos à saúde. Agora, é a vez da alta tecnologia, que expõe o usuários a novas substâncias tóxicas.
“É uma ‘alternativa’ que não passa de um ledo engano. Isso tudo sempre fez parte de uma jogada da indústria, que foi desafiando os consumidores para que continuassem consumindo produtos com a ilusão de que eles causassem menos mal”, afirma.
Silvana destaca que a Philip Morris não está sozinha nessa empreitada. A British American Tobacco, proprietária da Souza Cruz no Brasil, lançou o vaporizador ISwitch em 2018. O dispositivo eletrônico da fabricante de marcas como Dunhill e Lucky Strike carrega uma lâmina de aço inoxidável tão fina quanto um fio de cabelo.
A holandesa Fontem Ventures, subsidiária do grupo Imperial Brands e fabricante do cigarro eletrônico Blu, líder de vendas internacionais, também já declarou diversas vezes o interesse no potencial do mercado brasileiro.
Compartilhando a análise de que o que movimenta a defesa pela liberação de comercialização dos novos dispositivos no Brasil é exclusivamente o interesse financeiro, a pesquisadora diz que, além do duplo vício, há outra ameaça à saúde pública com os DEFs.
Assim como Gabriel, filho de Maria Helena, que aos 15 anos nunca havia entrado em contato com a nicotina, os produtos possibilitam a criação de um nova geração de fumantes, principalmente de jovens e adolescentes, atraída pelos saborizantes. Exatamente por isso, alguns estados dos EUA, como Nova York, Michigan e São Francisco, proibiram a comercialização dos aditivos de sabor.
Silvana teme que a estratégia global das empresas traga consequências às políticas de saúde antitabagistas do Brasil, referência internacional na área. Além de ter coordenado o processo de elaboração da Convenção-Quadro durante 1999 e 2003, o país foi reconhecido como a segunda nação a alcançar as medidas de combate ao tabaco estabelecidas pela OMS, com práticas que culminaram na expressiva queda de consumo
De acordo com a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição, de 1989, 34,8% da população brasileira acima de 18 anos fumava. Após a implementação das ações desenvolvidas pela Política Nacional de Controle do Tabaco, o cenário é completamente diferente. Em 2018, o percentual de fumantes brasileiro era de 9,3%, conforme dados do sistema Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico).
Os motivos citados por Stella e Silvana são os mesmos que levaram Zila Sanchez, livre-docente do programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a negar participação em um seminário da Philip Morris com a Folha de S. Paulo, para a qual foi convidada em 2017. Ela concorda que ao tentar se afastar do papel de vilã e desviar-se da perda de clientes dos últimos anos, a criação de uma clientela cativa de jovens é o norte da empresa para garantir lucros nas próximas décadas. E, para isso, nada melhor do que oferecer produtos com alta concentração de nicotina.
“Não dá para um profissional de saúde pública ter uma conversa com alguém anti-saúde pública com esse discurso de redução de danos e de ajudar as pessoas. Só o fato de existirem [as empresas de tabaco] é um contrassenso. Esse discurso é muito hipócrita”, critica. “Quem não consegue parar de fumar só está nessa situação por uma exposição ao produto fornecido por eles. É um processo bem cruel de relação de mercado”.
Caso a caso?
Apesar de conhecer todas as críticas relacionadas ao uso do vape, o psicólogo André Félix, 34 anos, não sentiu efeitos negativos ao longo do último ano. Pelo contrário. Ele afirma que tem mais apetite e mais fôlego, diferente de quando fumava o cigarro comburente. Com o vape, sentia a cabeça doer apenas no começo, quando usava uma alta concentração de nicotina. Regulou a dosagem e hoje comemora não ingerir mais o alcatrão e o monóxido de carbono do cigarro comum. Para ele, a tecnologia veio para ficar.
“É uma coisa que faz parte do meu cotidiano. É como se fosse o cigarro, o tempo todo ali. O que antes era pausa pro cigarro, agora, é pausa para vaporizar. Faz muita fumaça. Acho até divertido, meio cyberpunk, sei lá”, comenta Félix, aos risos.
Desde que fumou o dispositivo eletrônico pela primeira vez, nunca mais tocou no cigarro tradicional. “Prefiro dizer que não me considero mais fumante, mas dependente de nicotina. Claro que vaporar também tem questões, não é inócuo. Eventualmente, vou ter que largar, mas imagino que vai ser mais fácil”, diz Félix. O objetivo do psicólogo é retirar a nicotina do dia a dia aos poucos.
O pneumologista Luiz Fernando Pereira, coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), endossa que o uso dos dispositivos eletrônicos para redução de danos é controverso e não deve ser incentivado como uma política ampla contra o tabagismo.
Ele avalia que, além de desconsiderar a incerteza científica sobre os danos dos equipamentos a longo prazo e as novas substâncias, a estratégia parte do pressuposto incorreto de que os fumantes vão substituir o cigarro pela nova forma de consumo da nicotina. Aliás, um estudo da European Respiratory Society (ERS) mostrou que entre 60% a 80% dos usuários dos DEFs continuam fumando o cigarro comburente.
Segundo Luiz Fernando, as pesquisas que sustentam à redução de danos com as alternativas e que são citadas pela Philip Morris para justificar campanhas, principalmente as inglesas, partem de uma realidade muito diferente da brasileira. “É bem típico de um país que não conseguiu chegar ao nível do Brasil, com um programa estruturado para reduzir o consumo do tabaco”, diz o médico.
O pneumologista pondera que o uso dos DEFs pode ser passível de discussão para um caso individual, detalhadamente analisado, desde que todos os tratamentos adequados não tenham surtido efeito. Uma pessoa que, por exemplo, tenha tentado parar de fumar por diversas vezes, tenha sido acompanhada por profissional de saúde, feito uso de medicação e ainda sim não tenha conseguido interromper o vício.
Ele destaca que os serviços de cessação do tabagismo oferecidos pelo sistema de saúde brasileiro são comprovadamente eficazes e baseados em décadas de evidência, e devem permanecer como a primeira opção para os que desejam parar de fumar.
Alvos da moda
“O que me levou a fumar o cigarro eletrônico foi a modinha. Experimentei e achei gostoso”, assume Gabriela Todesco, de 26 anos. Após uma viagem aos EUA, a jovem comprou os aparelhos, mas, com o tempo, percebeu que a facilidade do dispositivo a fazia fumar ainda mais.
“O tabaco, por exemplo, tenho que bolar. Não fumo na minha sala, no meu quarto. O Juul, eu fumava o tempo inteiro. Assistia um filme e fumava. Senti que estava dependente, mas, logo que perdi o último, decidi não comprar mais”, conta.
A declaração de Gabriela demonstra que a preocupação com a abertura de uma porta para o fumo entre os jovens não é à toa. Afinal, são eles os mais expostos às novas estratégias de marketing utilizadas pela indústria do cigarro na internet e nas mídias sociais, para driblar as restrições de propaganda ao redor do mundo.
É o que ressalta Maribel Suarez, coordenadora do Centro de Estudos do Consumo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ, especialista em consumo e comportamento. Ela observa que a criação de hashtags e ações com influenciadores digitais promovem a ideia de um estilo de vida “descolado”, associado ao cigarro tradicional, mas, também, aos novos dispositivos.
Em 2018, a pesquisadora participou de um estudo feito em dez países, incluindo o Brasil, que identificou uma ação da Souza Cruz nas redes sociais. Com a #TasteTheCity (saboreie a cidade, em tradução livre), fotos e posts feitos por influenciadores em festas e eventos culturais estavam ligados ao cigarro da marca Dunhill. A investigação internacional indica que, em nenhum momento, há uma associação direta entre a Taste the City e a Souza Cruz, mas a presença sutil de cigarros está nas postagens.
No Brasil, a prática foi identificada pelos pesquisadores no festival Meca Inhotim, de 2016 e de 2017. No evento, havia um camping para influenciadores convidados que frequentemente postavam fotos com maços Dunhill acompanhados pela hashtag. Três anos depois, ainda é possível encontrar conteúdos sobre o slogan no site da instituição.
Organizações brasileiras, como a ACT Promoção da Saúde, alertam que kits com um maço do cigarro da marca foram distribuídos pela organização do Meca Inhotim. Práticas semelhantes foram registradas no Rock in Rio. A Souza Cruz afirmou, à época, que a participação nos eventos se deu exclusivamente em regime de comercialização de produtos e que a empresa não utiliza mídias sociais em atividades de marketing, direta ou indiretamente.
Maribel explica que esse tipo de ação é uma das formas do chamado “marketing sorrateiro”, onde os receptores da mensagem não têm consciência de que determinado conteúdo faz parte de uma ação promocional.
Artifício historicamente usado pela indústria do tabaco. “O marketing pela internet tem uma ambiguidade. Nem sempre é revelado que existe uma relação entre o influenciador com uma marca, com o produto. Essa é uma questão ética muito importante. É preciso reduzir essa ambiguidade”, destacal.
Mesmo faixas etárias mais baixas são alvos. Reportagem do The New York Times, de fevereiro deste ano, mostrou que a Juul, líder de venda de cigarros eletrônicos nos Estados Unidos, já adquiriu espaços publicitários até mesmo em websites voltados para o público infantil, como os da Nickelodeon, do Cartoon Network e da revista Seventeen.
Discurso “jovem”, mas com “párias”
Lançado em cidades da Itália e do Japão em 2014, o equipamento de fumo aquecido ganhou o mundo e hoje está disponível em 57 países. Um artigo publicado em fevereiro pela Southeast Asia Tobacco Control Alliance (Seatca) aponta que a PMI tem conseguido driblar legislações que restringem o uso do cigarro tradicional com base no discurso da ausência de fumaça.
No Japão por exemplo, onde o IQOS ganhou 16% do mercado de tabaco em apenas quatro anos após lançado, é proibido fumar em ambientes fechados. No entanto, o uso do tabaco aquecido é liberado.
Segundo a organização, também em outros países, como Romênia, Ucrânia, Rússia, República Checa e Espanha, a PMI criou cafés e lounges próprios, onde é possível usar o dispositivo livremente e os cardápios oferecem bebidas com os mesmos sabores dos chamados “heatstick”, a vareta aquecida. Os chamados “IQOS Friendly Places”.
Em março deste ano, a PMI estimou que aproximadamente 10,6 milhões de adultos fumantes em todo o mundo fizeram uso do IQOS. Os planos são ambiciosos: A empresa sinaliza que em 2021 mais de 100 bilhões de produtos com tabaco aquecido deverão ser vendidos globalmente.
Mais uma amostra de que o público jovem é o alvo preferencial da Philip Morris pelo mundo: em maio do ano passado, a empresa suspendeu uma campanha global de redes sociais após a Reuters denunciar a utilização de jovens influenciadores da internet para vender o IQOS, incluindo uma mulher de 21 anos, na Rússia. A ação publicitária era contrária até aos padrões de marketing da própria PMI, que alega proibir a promoção de produtos com modelos e celebridades menores de 25 anos.
O monitoramento da agência registrou que influenciadores realizaram campanhas nas redes sociais para o dispositivo no Japão, Itália, Suíça, Rússia e Romênia, mas sem a identificação da idade. As mensagens continham a hashtag “IQOSambassador”, ligando todos a uma rede de influenciadores digitais para “posicionar o IQOS como “uma alternativa segura a cigarros e um acessório na moda e sexy”, define a matéria da Reuters.
Durante um período de dez meses, pesquisadores da Universidade de Stanford, no Estados Unidos, realizaram uma avaliação das diversas formas de marketing envolvendo a divulgação do IQOS. O resultado do estudo, publicado em fevereiro deste ano, constatou que as campanhas são executadas massivamente por agências de publicidade, mídias sociais, coordenadores de eventos, conteúdo de mídia e agências de modelos.
As peças também fazem uso de artistas, músicos e influenciadores das mídias sociais, como celebridades, em nível global, com as hashtags #iqos, #iqosfriends, #iqosstories, and #iqoslovers. No Instagram, principalmente, os posts mostram pessoas jovens, atraentes e felizes com o os aparelhos nas mãos. Outros anúncios mostram surfistas e corredores, implicando que o produto é adequado a estilos de vida saudáveis.
Há ainda publicidades específicas sobre relacionamentos, onde os anúncios dizem explicitamente que o IQOS “mudará seus beijos” e outras peças que implicam que, se a pessoa ama algum fumante, seja ele pai, mãe ou cônjuge, deve encorajá-lo a usar o dispositivo.
Publicidade em veículos de mídia como Cosmopolitan, Vogue, Vice, Pink, Focus, Daily Mirror também foram feitas. O estudo identificou ainda que 270 eventos de diversos tipos, incluindo concertos de música, exposições, desfiles de moda, festivais de gastronomia e vinho, festivais de cinema, eventos esportivos, foram patrocinados pelo IQOS. Entre eles, atividades do Dia do Estudante em Tel Aviv, em Israel, obviamente voltado para o público jovem.
Em território brasileiro, não é possível identificar influenciadores patrocinados pelas fabricantes, mas a atuação da comunidade pró-vape é assídua nas redes sociais. Ao digitar palavras-chave como “cigarro eletrônico” ou “vaping” no Instagram ou no YouTube, centenas de perfis de usuários aparecem, com conteúdo de análise e indicação de produtos.
Outras campanhas polêmicas também fazem parte do histórico da Philip Morris. Antes do anúncio do IQOS, a “Hold my Light” também foi acusada de hipocrisia ao propor um desafio para que as pessoas deixassem de fumar por trinta dias iniciais, com a ajuda de amigos. A partir do exemplo internacional, a ação de marketing protagonizada pela “Precisamos Falar” com veículos corporativos da mídia brasileira pode ser um pequeno spoiler do que vem por aí enquanto o processo regulatório durar.
Agora, os esforços estão concentrados no universo das mídias sociais e conteúdos pagos em veículos tradicionais. Maribel Suarez aponta que, para anunciar o tabaco aquecido, a empresa estigmatiza os fumantes, conforme os exemplos descritos no início dessa reportagem.
“É uma das coisas mais cruéis que já vi. Aquele que é teu algoz, que ganha dinheiro com seu consumo, diz que você é um pária. Que está em uma situação da qual precisa ser retirado por meio de outra promessa”, comenta.
Propaganda ilegal
Não investir em ações intensas nas redes sociais por aqui não significa que a “Precisamos Falar” esteja dentro da lei brasileira, que proíbe todas as formas de propaganda envolvendo cigarro, permitindo somente a exposição dos produtos de tabaco para a venda em estabelecimentos comerciais. A comercialização deve estar sempre acompanhada de advertências sanitárias.
João Carlos Lopes, advogado, ex-promotor de Justiça do Consumidor do Ministério Público em São Paulo (MP-SP), considera a campanha ilegal. “A pretexto de incentivar um debate sobre ‘alternativas melhores’ para o fumante interessado em abandonar o tabagismo, a empresa divulgou mensagens capazes de confundir o público e induzi-lo ao erro a respeito do produto. Ora, o tabaco aquecido é produto cuja propaganda comercial é proibida no Brasil por resolução da Anvisa”, diz.
Ele acrescenta que o Código de Defesa do Consumidor também é desrespeitado, porque a campanha não é veiculada de forma que o consumidor identifique como publicidade. A visão de João Carlos não é isolada. Após meses no ar, o abaixo-assinado em defesa da liberação dos DEFs que constava da página principal da campanha foi suspenso por determinação da Anvisa. Contudo a empresa parece ter esquecido de informar ao público que essa não foi a única decisão do órgão:
“A Anvisa recebeu diversas denúncias de que a empresa fazia a promoção de dispositivo eletrônico para fumar. A partir da apuração das denúncias, foi verificado que a campanha era de fato irregular, sendo assim, a empresa foi notificada a suspendê-la. Cabe salientar que a notificação enviada determinou a suspensão da propaganda e não somente do abaixo-assinado”, diz trecho de nota enviada pela assessoria da comunicação da agência à reportagem.
Tendo em vista que a campanha, ainda assim, se manteve por meses no ar de maneira ilegal, questionamos a agência reguladora novamente sobre possíveis medidas a serem tomadas, mas não obtivemos retorno.
Em nota, a Philip Morris Brasil alega que o conteúdo da “Precisamos Falar” é de comunicação institucional. “Estamos em total legalidade com a comunicação realizada, sendo que todas as solicitações feitas pela Anvisa foram realizadas à época, o que inclui a suspensão da petição aberta para manifestação dos brasileiros em relação ao tema”, afirma o texto.
Sobre à ausência de comprovação científica a respeito do menor risco dos dispositivos, a empresa declara que uma série de estudos internacionais sobre o aquecimento do tabaco está disponível em seu site e foi apresentada à agência, “que, como órgão regulador, é, no Brasil, a instituição mais habilitada e capacitada para analisar o tema”.
Covid e fumo: ameaça 14 vezes maior
A doença respiratória desencadeada pelo novo coronavírus, que já infectou mais de 60 milhões de pessoas no mundo, apresenta complicações ainda mais graves entre os indivíduos que integram os chamados grupos de risco. E autoridades de saúde, como a Opas e a OMS, têm alertado desde o início da pandemia que fumantes estão entre os mais suscetíveis à ameaça da covid-19, já que nessas pessoas a probabilidade de baixa imunidade do sistema respiratório é maior.
Além de serem potencialmente mais vulneráveis a infecções virais e bacterianas, e ao desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e pulmonares, e câncer.
Um documento produzido em março pela Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, citado em nota técnica do Inca, alertou que entre os pacientes chineses diagnosticados com pneumonia associada ao coronavírus, as chances de progressão da doença e óbitos entre aqueles com histórico de tabagismo eram 14 vezes maiores do que em não fumantes,
O aviso da organização também se estende aos adeptos do narguilé, que correm o risco de entrar em contato com agentes infecciosos ao compartilhar piteiras e mangueiras do aparelho. Segundo a nota do Inca, uma sessão de uma hora fumando narguillé produz fumaça equivalente ao consumo de cem cigarros.
Outro estudo conduzido por cientistas da Universidade Stanford, publicado em agosto, também analisou as possíveis conexões entre a covid-19 e os e-cigarettes.Os pesquisadores descobriram que os jovens que utilizam o dispositivo eletrônico ou outros tipos de vaporizadores têm de cinco a sete vezes mais probabilidade de serem infectados na pandemia do que aqueles que não os usam.
Os motivos são parecidos aos que comprometem a saúde dos fumantes do cigarro tradicional: a vaporização diminui a imunidade no trato respiratório. A pesquisa teve participação de 4.351 pessoas, com idades entre 13 e 24 anos.