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Artigo

José Murilo de Carvalho: para dar mais sentido à palavra cidadania
07/08/2024 Blogueirinha Da Pri

Autor de Os Bestializados (1987) e de A Formação das Almas (1990), o historiador José Murilo de Carvalho é um dos mais importantes historiadores do país. Suas pesquisas ajudaram a entender como se deu (ou não se deu) a participação da população em momentos decisivos da vida política brasileira, como a passagem do Império para a República. 

Cidadania no Brasil – O Longo Caminho não é um trabalho para o público acadêmico: pretende promover a discussão da cidadania no país, procurando dar sentido à palavra, desgastada pelo mal uso.

A partir de uma divisão clássica, feita pelo inglês T.H. Marshall, José Murilo traça um histórico dos diferentes direitos que compõem a cidadania: os civis, os políticos e os sociais. No Brasil, o caminho percorrido teria sido inverso do que ocorre na Inglaterra, em que os direitos civis (individuais) levaram à conquista de direitos políticos e, estes, aos direitos sociais. Aqui, os sociais vieram primeiro, especialmente após 1930, com a queda da República Velha. A Constituição de 1988, ao garantir o direito de voto aos analfabetos, tornou os direitos políticos praticamente universais no país. Mas, enquanto isso, apesar de avanços como o Código de Defesa do Consumidor(1990) e da instituição do Programa Nacional dos Direitos Humanos (1996), o brasileiro ainda não pode confiar na Justiça e na polícia – além de desconhecer seus direitos, como mostra a pesquisa feita no Rio em 1997, quando 57% dos entrevistados não sabiam mencionar um só direito e quase metade achava que era legal a prisão por simples suspeita.

Leia abaixo entrevista concedida pelo historiador. 

Porque o senhor decidiu escrever esse ensaio? 

José Murilo de Carvalho – A pretensão do livro é levar o debate sobre o problema de nossa democracia para um público não acadêmico, utilizando conceitos da ciência política. É um livro engajado, mas sem receitas. Busca chamar a atenção para um problema central de nossa sobrevivência democrática: como fazer a democracia politica produzir igualdade social.

O senhor aponta que a palavra cidadania substituiu a palavra povo na retórica política. Isso esvaziou o conceito? 

A palavra cidadania foi banalizada após a Constituição de 1988. Caiu até na boca de muitos políticos que deveriam ser proibidos de usá-la. Banalizar é maneira sutil de esvaziar. Quem aguenta mais ouvir falar em “resgate da cidadania”? A luta pela cidadania começa pela recuperação da própria palavra.

Para o senhor, a construção da cidadania no Brasil seguiu um caminho inverso ao percorrido na Inglaterra. Até que ponto isso inviabiliza a “cidadania plena”? 

Argumento que houve vários caminhos para a maturidade democrática como concebida no Ocidente, muitos afastando-se da rota inicial percorrida pela Inglaterra. O nosso caminho praticamente colocou o modelo inglês de cabeça para baixo, na medida em que deixou por último a generalização dos direitos civis. A inversão não torna o alvo inatingível, mas explica as dificuldades que ainda encontramos.

Na sua opinião, o país deveria priorizar a garantia de direitos civis neste momento? É o esforço que falta? 

Pensando de maneira não imediatista, a principal tarefa que se coloca é generalizar os direitos civis. Por isso entendo generalizar o conhecimento de sua existência e criar as condições de fazê-los valer. O cidadão precisa saber que tem direito de ter sua pessoa, sua liberdade, sua privacidade, sua dignidade, sua propriedade protegidas contra violações de particulares e do governo. E precisa ter ao seu alcance um aparato judicial capaz de protegê-lo. Isso só será possível com maciço investimento em educação e com profunda democratização do judiciário e moralização da polícia. O capítulo 1 da Constituição (direitos e deveres) devia ser matéria obrigatória no ensino fundamental e médio. Hoje, alunos universitários o desconhecem.

Que direitos civis estariam próximos de serem conquistados, mas ainda não o foram?

Falo nos direitos básicos mencionados acima. São eles que dão o fundamentos para a ação política efetiva, para a cidadania efetiva, não súdita. São eles que dão sentido à prática dos direitos políticos. Sem eles, o voto, mesmo generalizado, permanece praticamente classicista, ou apenas ritualista. Não há direito novo a ser conquistado. Nosso problema emana questão dos direitos que é semelhante ao que se coloca no caso da educação e da riqueza. Eles se concentram em parcela pequena da população, entre os “doutores”, que até hoje são desiguais até na cadeia. Nosso Estado-Nação falhou na tarefa básica cumprida em outros países de reduzir as grandes desigualdades de riqueza, educação e direitos.

Num ambiente de recessão, endividamento crescente e neoliberalismo, como garantir a manutenção dos direitos sociais sem quebrar financeiramente o Estado? 

Trata-se de mais um agravante de nosso predicamento. Uma coisa é a crise do Estado de bem-estar em países com níveis aceitáveis de desigualdade e alta escolaridade. Outra é a mesma crise em um país com 50 milhões de indigentes e igual número de analfabetos funcionais. O forte, em nosso percurso, eram os direitos sociais. São eles, no momento, os mais ameaçados.

Qual é o período de maior conquista para os cidadãos brasileiros? Por quê?

Apesar de tudo, acho que o momento de maior avanço é o atual, pós-1988. Embora ainda sem muita eficácia, os direitos políticos se generalizaram, as instituições representativas funcionam, pelo menos formalmente. Na educação fundamental tem havido algum progresso. O movimento de organizações civis tem crescido e aumentado sua intervenção na vida social. Mas tudo ainda é muito lento diante do tempo perdido.

Por que o senhor vê positivamente o papel do MST? 

Porque incorpora, e de maneira ativa, não-cooptada, importante setor de marginalizados na vida econômica e política. A mera existência do MST é uma vergonha para o país, que chega ao século 21 sem resolver o problema do simples registro de terras, sem falar de sua distribuição. Ainda hoje o Incra desapropria fazendas inexistentes. Pergunto-me o que acontecerá se os milhões de marginalizados das grandes cidades conseguirem organizar-se da mesma maneira que os sem-terra. Se o sistema tem dificuldades em lidar com o MST, o que dizer diante de uma eventual movimentação dos 50 milhões de pobres? Ou de uma provável expansão de organizações do tipo do Comando Vermelho e do PCC?

Itamar e Garotinho são mostras do retorno, da permanência ou da decadência dos líderes messiânicos? 

Da sobrevivência. Tudo o que precede indica que ainda há espaço em nossa sociedade para esse tipo de liderança, assim como para a de chefes políticos clientelistas como Maluf e ACM. A tradição de messianismo, a crença em figuras salvadoras, têm raízes profundas. A incapacidade de nossa democracia política em reduzir os índices de desigualdade, e a desigualdade em si, é caldo de cultura para o messianismo.

Do ponto de vista da cidadania, como o senhor analisaria a conjuntura de crise energética, crise de popularidade do Executivo, acusações contra o presidente do Senado e candidaturas de oposição liderando as pesquisas?

Registro de início a atitude antidemocrática e constrangedora do governo [Fernando Henrique Cardoso]. Diante de um erro monumental de planejamento, injustificado em administração que dura há seis anos, o cidadão, vítima da trapalhada, não mereceu sequer um pedido de desculpa. Apesar disso, o povo tem colaborado de maneira extraordinária, por medo ou espírito público. Quanto à corrupção, não creio que haja mais dela hoje do que antes. Violência e corrupção são endêmicas no País há 500 anos, são o nosso feijão com arroz social. A novidade é que está havendo mais denúncia e investigação dos grandes ladrões-políticos, juízes, empresários – em parte graças à melhoria na atuação do Ministério Público. É humilhante para o brasileiro, mas é um passo à frente para o cidadão.

Para o senhor, o grande número de partidos políticos é resultado da conquista de direitos políticos. A reforma política é realmente necessária?

O grande número de partidos é resultado de leis eleitorais e partidárias. Em si, o fenômeno não é mais nem menos democrático. Reformas políticas podem aperfeiçoar o sistema representativo, mas não creio que possam ir muito longe na direção de tornar o sistema mais sensível ao drama social do país, pelo menos a curto prazo. Acredito mais em reformas de instituições, como a polícia e a Justiça, em descentralização política e administrativa e, sobretudo, na ação dos de baixo cobrando diretamente responsabilidade dos de cima, com o uso de todo tipo possível de instrumentos de pressão. O paternalismo e o clientelismo não bastam, representação formal não bastará.

Publicado originalmente pelo jornal O Estado de S. Paulo em 15/07/2001

Fonte: https://operamundi.uol.com.br/memoria/jose-murilo-mais-sentido-para-a-palavra-cidadania/

 

José Murilo de Carvalho: a cidadania em marcha acelerada — 1930 a 1964 (2ª parte)

A lentidão da construção de nossa cidadania tem suas explicações no pouco avanço de um dos três pilares que integram o ser cidadão: os direitos sociais

(Segunda parte da análise do livro “Cidadania no Brasil — O Longo Caminho”, do historiador José Murilo de Carvalho, doutor por Stanford e pós-doutor pela Universidade de Londres)

A dinâmica da construção da cidadania no Brasil se elevou consideravelmente a partir da vitória da revolução que insurgiu contra as oligarquias regionais: a Revolução de 1930. A partir de 1930, o voto popular passou a ter um valor que não tinha antes. Desse modo, sob o comando do gaúcho Getúlio Vargas, novo presidente da República, implementou-se uma política de cooptação da classe trabalhadora ávida por emprego e renda. Nascia, assim, o chamado trabalhismo que influenciou diretamente a melhora de um dos três pilares que constroem a cidadania: o dos direitos sociais.

Sob esse aspecto é evidente que o trabalhismo getulista foi decisivo para a elevação da cidadania ante os consideráveis ganhos obtidos pelos trabalhadores sindicalizados. Por sua vez, há de se ressaltar que tantos os ganhos políticos quanto os ganhos civis não apresentaram um crescimento contínuo e crescente.

Uma interessante constatação, nos escritos do historiador José Murilo de Carvalho, doutor por Stanford, pós-doutor pela Universidade de Londres e ex-professor de Oxford, relativa à ênfase dada pelo getulismo nos direitos sociais, evidencia a maneira distorcida como estes eram percebidos pela sociedade. Quanto a isso, relata o autor que “a antecipação dos direitos sociais fazia com que os direitos não fossem vistos como tais, como independentes da ação do governo, mas como um favor em troca do qual se deviam gratidão e lealdade. A cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicadora”. Dito de outro modo, o trabalhador era visto como um ser passivo e domesticado. Certamente, esse trabalhador estava léguas distantes daquele trabalhador ativo em suas reivindicações. Resultado: a mentalidade paternalista do governo com a sociedade resultou numa cidadania passiva e nada parecida com o sujeito proativo de suas próprias ações.

Do ponto de vista ideológico, a chamada “Era Vargas” foi diretamente influenciada pelo positivismo de Auguste Comte. Entende esse autor que o proletariado deva ser incorporado à sociedade por meio de medidas de proteção aos trabalhadores e suas famílias.

A partir dessa crença é possível entender as inúmeras realizações da Era Vargas que tanto beneficiaram determinada classe que se mostrava cada vez mais expressiva num Brasil que se urbanizava: a dos trabalhadores.

Vale ressaltar o relevante papel dos intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), fundado um ano após o suicídio de Getúlio Vargas, com propósito de moldar e propagar a ideologia que pautou o legado nacional desenvolvimentista para um dos governos mais dinâmicos de toda a nossa história: o governo de Juscelino Kubitschek.

Do ponto de vista institucional, o Estado cresceu criando instituições com missões específicas de atuação nas mais diferentes áreas que sustentam o desenvolvimento do país. Uma dessas instituições, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, foi de suma importância para instrumentalizar as políticas públicas que beneficiaram principalmente a massa trabalhista urbana. Por limitação de espaço, transcrevo, dos escritos do autor, um trecho em que este narra a enormidade de instituições criadas na Era Vargas para atender às massas urbanas sindicalizadas.

Com a palavra José Murilo de Carvalho: “Na área trabalhista, foi criado em 1931 o Departamento Nacional do Trabalho. Em 1932, foi decretada a jornada de oito horas no comércio e na indústria. Nesse mesmo ano, foi regulamentado o trabalho feminino, proibindo-se o trabalho noturno para mulheres e estabelecendo-se salário igual para homens e mulheres [….]”.

Não poderia deixar de citar a criação, em 1943, da vasta legislação que rege até hoje o trabalho no Brasil: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Para os menos informados, creio ser oportuno lembrar que essa legislação foi concebida num ambiente cujo contexto imperava a fragilidade dos direitos políticos e civis. Prevaleceu, sob os demais, os direitos sociais.

Desse modo, a construção de nossa cidadania voltava a apresentar um movimento de recuo. A partir de 1945, ela voltou ao seu caminho de construção influenciada pelo considerável crescimento dos indicadores políticos. Falaremos desse assunto no item que segue.

O marechal Eurico Gaspar Dutra sucedeu, pelo pleito direto, a Getúlio Vargas (que se elegeu senador). A partir daí, uma nova Constituição foi promulgada em 1946. Nesse contexto, o processo de recua-avança voltou a caminhar no sentido de fortalecer a construção da cidadania brasileira.

Para isso, a Constituição, além de manter conquistas sociais, garantiu os direitos civis e políticos. Entretanto vale ressaltar o pouco avanço dos direitos sociais nos tempos em que o país vivia sob a égide de governos democráticos. Resultado: a tríade que integra a construção da cidadania não se manteve completa, ante o avançar dos direitos políticos e civis, mas não dos sociais. Em 1950, Getúlio Vargas volta ao poder pelos braços do povo, numa onda de intenso nacionalismo que culminou com a criação da Petrobrás.

A agitação política alimentada por seus incontáveis adversários ou inimigos levou o velho e doente Vargas a implementar aquela trágica estratégia que tanto abalou a história política do Brasil: o suicídio. Assim, a velha raposa calou seus inimigos por dez anos. O cadáver de Vargas, assim como o fantasma de Hamlet, do genial William Shakespeare, foi fundamental para que Juscelino Kubitschek assumisse a Presidência num contexto absolutamente democrático.

De início, já no exercício da Presidência, o ex-governador de Minas Gerais recebeu uma forte oposição a seu governo pelo fato de este ser visto como uma continuação do governo de Getúlio Vargas. E isso é uma verdade, pois a ideologia do nacional desenvolvimentismo, de certo modo, caracterizou-se como uma continuação da Era Vargas. Essa concepção de desenvolvimento foi fundamental para a industrialização de São Paulo. O grande símbolo dessa industrialização foi, sem dúvida, a indústria automobilística. A mudança da capital para Brasília foi fundamental para levar o desenvolvimento ao interior do país. Inúmeras usinas e estradas se tornaram a face mais visível de um desenvolvimento voltado para atender às enormes demandas do país por energia e transportes. Nessa euforia desenvolvimentista é oportuna a seguinte indagação: que dinâmica seguiu a construção da cidadania brasileira nesse ambiente democrático de euforia desenvolvimentista?

Eis a resposta: há de se ressaltar que, apesar da euforia produzida pela Era JK, o governo dele não mexeu num vespeiro chamado reforma agrária. A educação, de igual forma, não teve os mesmos avanços da infraestrutura. Por essa razão, a construção da cidadania, sem ser foco do governo JK, continuou seu rumo, lento, sim, mas sem retrocessos. A lentidão da construção de nossa cidadania tem suas explicações no pouco avanço de um dos três pilares que integram o ser cidadão: os direitos sociais.

Entende o autor que, “sintomaticamente, os direitos sociais quase não evoluíram durante o período democrático. Desde o final do Estado Novo, os técnicos da previdência buscavam, com o apoio de Vargas, unificar o sistema e expandi-lo para abranger toda a população trabalhadora. Mas eram grandes as resistências”. Isso sim, principalmente a integração de um tipo de trabalhador pouco considerado mesmo em governos dinâmicos como foi o de JK: o do meio rural. Num ambiente de tranquilidade, Juscelino passou o governo para um presidente de temperamento instável que, sete meses após a posse, renunciou. Falo de Jânio Quadros. Pela brevidade do seu mandato, a cidadania brasileira não sofreu as modificações, as quais vieram a ocorrer no breve e intenso governo de João Goulart. A esse respeito, o autor relata, em seus escritos, a aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social, que possibilitou a ampliação da cobertura previdenciária, dessa forma, passando a incluir os profissionais liberais. Entretanto continuavam excluídos dos benefícios previdenciários os trabalhadores rurais, os trabalhadores autônomos e as empregadas domésticas. Com a deposição de João Goulart, os militares se tornam os novos donos do poder. A partir daí, o longo caminho da construção da cidadania, no Brasil, passou por um novo olhar, num novo ambiente léguas distantes do ideário democrático. Esse é o assunto do item a seguir.

Fonte: https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/jose-murilo-de-carvalho-a-cidadania-em-marcha-acelerada-1930-a-1964-2a-parte-442150/

José Murilo de Carvalho - 22/09/2014

Durante sabatina no Roda Viva. O historiador faz uma análise do cenário político brasileiro às vésperas das eleições

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=r2yMkdRQWkc

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