Artigo
Liberdade De Expressão - Direito Democrático.
Ainda sobre Charlie Hebdo e a charge polêmica, compartilho a abaixo postagem de Rogério Godinho, que elucida aspectos importantes da questão.
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Tenho visto um alinhamento de muitos amigos, amigas e conhecidos com as críticas que os meios de comunicação tem reverberado atacando o Charlie Hebdo.
Talvez não saibam que são as críticas as mesmas críticas da direita e extrema direita francesa ao Charlie. As lágrimas de crocodilo no massacre de um ano atrás não escondem que muita gente da direita francesa comemorou duplamente o massacre dos artistas do Charlie: primeiro, pois ajudou a alimentar a histeria xenofóbica islamofóbica; e segundo, por massacrar artistas que nunca tiveram pudor em atacar todas as instituições francesas e religiosas em geral.
É bom lembrar que no funeral dos artistas massacrados em janeiro de 2015, a canção cantada a plenos pulmões por que foi homenagear os mortos, não foi a "Marsellesa", mas sim "A Internacional", hino dos trabalhadores.
Se há uma questão importante no debate ao Charlie Hebdo é a Liberdade de Expressão, que eles mesmos são partidários ao defenderem o direito de qualquer leitor poder esculhambar e xingar eles a vontade, afinal faz parte deste direito democrático fundamental.
A questão é que a ironia da charge (que até pode ser de "mal gosto" para alguns) é apagada na operação em curso contra a ção de humor.
Como fui editor de quadrinhos, tal como o Godinho explica abaixo, que o que fez o Riss é uma crítica à xenofobia, que choca ao usar imagens que como explica o Godinho, foram usadas e manipuladas por muitos para vários objetivos.
O principal é termos noção do que está por trás do debate, para não cairmos em uma armadilha.
Ainda mais num momento em que seja na França, o "Estado de Emergência" questiona outros direitos democráticos como o de manifestação pública, sendo enfrentado pelo movimento operário, através dos sindicatos e pelas organizações democráticas francesas. Seja no Brasil onde o direito de manifestação é pisoteado pela repressão da Polícia Militar de SP (e de outros Estados) cujo farda lhe confere o direito de negar os direitos democráticos elementares, como podemos ver claramente nas manifestações contra o aumento da passagem.
É a liberdade de se expressar, de criar que estamos debatendo. André Breton, Diego Rivera e Leon Trotsky já diziam em 1938: "para a criação intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coação, nem o menor traço de comando!"
São direitos democráticos a liberdade de pensar, de organização, de manifestação, de expressão entre outros.
O que estamos vendo é um ataque ao direito democrático fundamental de liberdade de expressão, que para ser efetiva deve ter como divisa "nada é sagrado e tudo pode ser dito" (R. Vaneigem).
Alexandre Linares, 18/1/2016
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Ilustram esse post desenhos de Charb, do no livro Marx - Manual de Instrução do pela Boitempo Editorial.
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POSTAGEM DE ROGÉRIO GODINHO
Tenho visto as pessoas chocadas – com razão – com a charge da Charlie Hebdo novamente retratando o menino Aylan.
Há várias acusações. De xenofobia, de racismo, de falta de respeito com a dor da família, de usarem a imagem do menino despudoradamente. Independente da intenção do ilustrador, sou forçado a concordar com essas acusações porque acredito que o comunicador deve avaliar o impacto que tem no público.
Entretanto, quero compartilhar com vocês algum contexto sobre o trabalho da ção e a própria cultura francesa do humor.
Em primeiro lugar, o alvo da Charlie é justamente a xenofobia e o racismo. Nenhum artista ali concorda com os estereótipos. O objetivo dele é a denúncia. A charge está dizendo: “é isso mesmo que você acha que é?”
“Você acha mesmo que todos os imigrantes são daquele jeito?”
“Consegue enxergar o absurdo disso?”
A revista está tentando – sem muita competência nessa charge, do meu ponto de vista – criticar o pensamento xenofóbico, reacionário e racista.
No caso desta semana, o autor da charge tem um longo histórico de crítica à xenofobia. Laurent Sourisseau, o Riss, é diretor de redação e principal proprietário da revista. Portanto, não se trata de qualquer chargista. Também era dele a charge com Aylan caído em frente a um outdoor do McDonalds.
Particularmente, não sou fã do Riss. Sua ânsia em chocar é demais para os meus padrões brasileiros. Não porque ele tenha usado o garoto. Afinal, todo mundo usou o garoto. A imprensa, governos, até gente defendendo os imigrantes, como eu, usou. Minha crítica a ele é porque faltou empatia para entender como seu desenho causaria dor nas pessoas.
Mas, para o leitor tradicional da revista, a intenção de criticar a xenofobia está muito clara. Mesmo o consumidor regular do humor francês entende isso. Na cultura francesa, existe a ideia do second degré (assim mesmo, a expressão usa second). É mais ou menos o que nós entendemos por ironia. Para eles, o sentido literal e óbvio está na primeira camada (ou premier degré). E o que você interpreta, vê depois, o second degré. Menos usadas, ainda há troisième degré e quatrième degré.
Além do plano teórico, existe a intenção de chocar. Antes mesmo de Luis XVI subir no cadafalso, já havia charges dele decapitado. Suprema heresia na época, mesmo em tempos revolucionários. Se eu vivesse no tempo de D. Maria Louca, ia dizer que aqueles franceses não tinham decência, que não tinham limite.
A elite cultural francesa rejeita a ideia de tabu. Tudo pode e deve ser revirado, contestado, terra arrasada, uma tradição que remonta a Descartes. E isso inclui qualquer conceito de pudor. Por exemplo, com relação ao sexo. Para eles, o caso Monica Lewinsky não fez o menor sentido. Presidentes franceses pulam a cerca e não faz a menor diferença.
Ok, podemos aceitar isso. Mas não usar uma criança inocente morta, certo?
É aqui que eu quero reforçar: eu fiquei chocado com a charge. Não só com essa, com as outras que eles fizeram na época que o Aylan morreu. E, óbvio, essa última foi pior. Os personagens com feição simiesca, a sugestão de que o menino se tornaria um estuprador, de que todo imigrante seja parte daquilo. Mesmo que a intenção seja criticar, a imagem é lamentável. E pode certamente ser usada para outros fins.
O que eu desejo ressaltar aqui é a diferença entre a nossa cultura e a deles. O contexto da ção. Eu não gosto. Eu não aceito. Eles não enxergam a mesma coisa. Eles enxergam imediatamente a crítica.
Talvez o melhor exemplo seja uma capa em que a revista americana New Yorker retratou o Obama como um muçulmano. Foi uma evidente tentativa de emular a cultura francesa do escracho. Em plena disputa eleitoral, a ilustração causou alvoroço. Ambas as campanhas – Obama e McCain – protestaram contra a capa. “Vocês foram longe demais”. E ambas as campanhas tinham plena consciência de que a New Yorker não estava dizendo que o Obama É muçulmano. Óbvio que não. A New Yorker é liberal e democrata. Ela estava ironizando aqueles que diziam isso. Mas Obama e McCain não quiseram saber, seus eleitores não gostaram, pois não entenderam o “second degré”. Não deu certo.
Aí entra um último ingrediente nessa receita. O público da Charlie Hebdo explodiu. Era uma revista famosa, mas hoje é uma marca mundialmente popular. Riss continua falando com o seu leitor regular, que é quem de fato compra a revista, mas milhões de outros estão prestando atenção. Para estes, é fácil apontar um desenho e dizer: “É da Charlie, aqueles caras do atentado. Acho que mereceram!”.
Ou seja, um público que nunca leu a Charlie interpreta o desenho como uma ofensa. Que ele é, ao se considerar a mensagem explícita, o premier degré.
É onde eu e você entramos. Dificilmente vamos aceitar alguns dos exageros da Charlie Hebdo. Mas talvez possamos entender o que realmente está acontecendo ali. E dizer, sem ódio: “esses franceses não têm limite mesmo”.
Tenho visto as pessoas chocadas – com razão – com a charge da Charlie Hebdo novamente retratando o menino Aylan.
Há várias acusações. De xenofobia, de racismo, de falta de respeito com a dor da família, de usarem a imagem do menino despudoradamente. Independente da intenção do ilustrador, sou forçado a concordar com essas acusações porque acredito que o comunicador deve avaliar o impacto que tem no público.
Entretanto, quero compartilhar com vocês algum contexto sobre o trabalho da ção e a própria cultura francesa do humor.
Em primeiro lugar, o alvo da Charlie é justamente a xenofobia e o racismo. Nenhum artista ali concorda com os estereótipos. O objetivo dele é a denúncia. A charge está dizendo: “é isso mesmo que você acha que é?”
“Você acha mesmo que todos os imigrantes são daquele jeito?”
“Consegue enxergar o absurdo disso?”
A revista está tentando – sem muita competência nessa charge, do meu ponto de vista – criticar o pensamento xenofóbico, reacionário e racista.
No caso desta semana, o autor da charge tem um longo histórico de crítica à xenofobia. Laurent Sourisseau, o Riss, é diretor de redação e principal proprietário da revista. Portanto, não se trata de qualquer chargista. Também era dele a charge com Aylan caído em frente a um outdoor do McDonalds.
Particularmente, não sou fã do Riss. Sua ânsia em chocar é demais para os meus padrões brasileiros. Não porque ele tenha usado o garoto. Afinal, todo mundo usou o garoto. A imprensa, governos, até gente defendendo os imigrantes, como eu, usou. Minha crítica a ele é porque faltou empatia para entender como seu desenho causaria dor nas pessoas.
Mas, para o leitor tradicional da revista, a intenção de criticar a xenofobia está muito clara. Mesmo o consumidor regular do humor francês entende isso. Na cultura francesa, existe a ideia do second degré (assim mesmo, a expressão usa second). É mais ou menos o que nós entendemos por ironia. Para eles, o sentido literal e óbvio está na primeira camada (ou premier degré). E o que você interpreta, vê depois, o second degré. Menos usadas, ainda há troisième degré e quatrième degré.
Além do plano teórico, existe a intenção de chocar. Antes mesmo de Luis XVI subir no cadafalso, já havia charges dele decapitado. Suprema heresia na época, mesmo em tempos revolucionários. Se eu vivesse no tempo de D. Maria Louca, ia dizer que aqueles franceses não tinham decência, que não tinham limite.
A elite cultural francesa rejeita a ideia de tabu. Tudo pode e deve ser revirado, contestado, terra arrasada, uma tradição que remonta a Descartes. E isso inclui qualquer conceito de pudor. Por exemplo, com relação ao sexo. Para eles, o caso Monica Lewinsky não fez o menor sentido. Presidentes franceses pulam a cerca e não faz a menor diferença.
Ok, podemos aceitar isso. Mas não usar uma criança inocente morta, certo?
É aqui que eu quero reforçar: eu fiquei chocado com a charge. Não só com essa, com as outras que eles fizeram na época que o Aylan morreu. E, óbvio, essa última foi pior. Os personagens com feição simiesca, a sugestão de que o menino se tornaria um estuprador, de que todo imigrante seja parte daquilo. Mesmo que a intenção seja criticar, a imagem é lamentável. E pode certamente ser usada para outros fins.
O que eu desejo ressaltar aqui é a diferença entre a nossa cultura e a deles. O contexto da ção. Eu não gosto. Eu não aceito. Eles não enxergam a mesma coisa. Eles enxergam imediatamente a crítica.
Talvez o melhor exemplo seja uma capa em que a revista americana New Yorker retratou o Obama como um muçulmano. Foi uma evidente tentativa de emular a cultura francesa do escracho. Em plena disputa eleitoral, a ilustração causou alvoroço. Ambas as campanhas – Obama e McCain – protestaram contra a capa. “Vocês foram longe demais”. E ambas as campanhas tinham plena consciência de que a New Yorker não estava dizendo que o Obama É muçulmano. Óbvio que não. A New Yorker é liberal e democrata. Ela estava ironizando aqueles que diziam isso. Mas Obama e McCain não quiseram saber, seus eleitores não gostaram, pois não entenderam o “second degré”. Não deu certo.
Aí entra um último ingrediente nessa receita. O público da Charlie Hebdo explodiu. Era uma revista famosa, mas hoje é uma marca mundialmente popular. Riss continua falando com o seu leitor regular, que é quem de fato compra a revista, mas milhões de outros estão prestando atenção. Para estes, é fácil apontar um desenho e dizer: “É da Charlie, aqueles caras do atentado. Acho que mereceram!”.
Ou seja, um público que nunca leu a Charlie interpreta o desenho como uma ofensa. Que ele é, ao se considerar a mensagem explícita, o premier degré.
É onde eu e você entramos. Dificilmente vamos aceitar alguns dos exageros da Charlie Hebdo. Mas talvez possamos entender o que realmente está acontecendo ali. E dizer, sem ódio: “esses franceses não têm limite mesmo”.
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