Artigo
Migração E Relacionamentos
Sólido como uma pedra aos 90 anos, Zygmunt Bauman fala sobre migração e relacionamentos
Considerado um dos pensadores mais influentes do mundo, o sociólogo esbanjou lucidez em entrevista exclusiva a GALILEU
POR ANDRÉ BERNARDOSOCIEDADE LÍQUIDA: ZYGMUNT BAUMAN VEIO AO BRASIL PARA UMA CONFERÊNCIA SOBRE EDUCAÇÃO (FOTO: SFM PRESS REPORTER/ ALAMY/ EDITORA GLOBO)
Pelo menos oito dos 35 livros de Zygmunt Bauman lançados no Brasil trazem a palavra “líquido” impressa na capa. Para o sociólogo polonês — que completará 90 anos em 19 de novembro —, tudo ao nosso redor é líquido, volátil e transitório. “Os tempos são líquidos porque, assim como a água, tudo muda muito rapidamente. Na sociedade contemporânea, nada é feito para durar”, diz o professor emérito das universidades de Leeds, na Inglaterra, e Varsóvia, na Polônia. Exatamente por essa razão, a visão de mundo de Bauman é frequentemente tachada de muito pessimista. Segundo alguns de seus maiores críticos, ele estaria para a sociologia como José Saramago está para a literatura ou Arthur Schopenhauer para a filosofia. Ele rebate a tese de que espera sempre pelo pior. “Estou convencido de que um mundo diferente e, por isso mesmo, melhor do que o que temos hoje é possível. Um mundo mais ético, justo e solidário”, afirma. Prolixo em sua produção literária, Bauman é reservado na vida pessoal. Dele sabemos apenas que é viúvo (sua companheira, Janina, morreu em 2009), tem três filhas (Anna, Lydia e Irena) e, desde 1971, mora na Inglaterra. No mais, continua a dar aulas, fazer palestras e lançar livros. O mais recente deles é A riqueza de poucos beneficia todos nós? (Zahar, 2015). Em setembro, Bauman esteve no Brasil, onde participou do evento Educação 360. Em entrevista exclusiva a GALILEU, o pensador falou sobre crise migratória, modernidade líquida e sociologia humanística. “Nossa vida é muito corrida. Vivemos sob a tirania do momento presente. Temos sempre pouco tempo para refletir sobre para onde estamos indo, avaliar o que estamos deixando para trás e ponderar sobre o que temos a ganhar e a perder com nossas decisões.” Acompanhe os principais momentos desse bate-papo. P: Como o senhor analisa a crise migratória que atinge o mundo contemporâneo? Vê alguma solução, a curto e médio prazo, para o problema dos refugiados? Solução para o problema dos refugiados? Honestamente, não. Mas não sou profeta, sabe? [risos] O que vejo, a longo prazo, são grandes benefícios. Por ora, contudo, o que temos é muita confusão. Infelizmente, não acho que encontraremos uma solução rápida para o problema dos refugiados. P: Por quê? Esse fenômeno não é totalmente novo. Diferentemente do que ocorreu no passado, quando os europeus migraram para diversos outros países, pessoas de outros países estão agora migrando para a Europa. E isso é um choque! Essa migração em massa provoca uma disparidade sem precedentes. Antigamente, havia um processo de assimilação cultural. O imigrante chegava a um país e, aos poucos, tornava-se parte dele. Hoje em dia, isso não acontece mais. Os governantes partem do princípio de que são de culturas superiores e os imigrantes, ao contrário, pertencem a culturas inferiores. Daí a disparidade, entende? A assimilação, tal como ocorria antes, não existe mais. P: A que o senhor atribui isso? E, mais importante, como mudar essa realidade? Pouca gente se deu conta, mas vivemos em um mundo globalizado. Ninguém é superior ou inferior a ninguém. Dependemos uns dos outros para sobreviver. Outra coisa: uma cultura nunca é superior a outra. Vivemos em um mundo multicultural. Há espaço para todos. Os imigrantes que chegam a um novo país querem trabalhar, pagar impostos, cumprir as leis, ou seja, ser reconhecidos como cidadãos. Porém, não querem abrir mão de sua origem, sua cultura, sua identidade. Numa mesma rua de Londres você encontra, por exemplo, uma igreja católica, uma sinagoga judaica e uma mesquita islâmica, uma ao lado da outra. E a diferença religiosa não é a única que existe por lá. Temos algumas outras: sociais, culturais, linguísticas, de gênero. P: Por que, ainda hoje, é tão difícil conviver com essas diferenças culturais? Antigamente, nossos antepassados acreditavam que a cultura dominante assimilaria a dominada, e por isso eventuais diferenças tenderiam a desaparecer. Hoje o desafio é outro: não fazer desaparecerem as diferenças, mas, ao contrário, aprender a conviver com elas. Por que não podemos simplesmente viver em comunidade, cada um dando o melhor de si em prol do bem comum? Entendo que o outro é um mistério, e mistérios costumam nos deixar apavorados. O outro fala uma língua diferente, age de modo diferente, reza para outro deus e assim por diante. Enfim, é um estranho. E estranhos tendem a nos deixar inquietos. Não sabemos muito bem como lidar com eles, como interagir com eles. Mas temos de aprender. P: Hoje tudo é líquido, passageiro e descartável: o medo, o amor, a felicidade. O que é sólido, duradouro e permanente em nossa sociedade? Bem, a metáfora da liquidez é, na verdade, muito simples. O que ela sugere é que, como todo líquido, nossa configuração social não consegue manter a forma por muito tempo. Está sempre em transformação. Mas, veja bem, isso não significa necessariamente que não existam corpos sólidos. A única razão de eu chamar nossa modernidade de líquida é para distingui-la da modernidade sólida, aquela do tempo dos nossos ancestrais. Nossos bisavós construíram estruturas sólidas porque descobriram que o mundo que herdaram de nossos tataravós não era suficientemente sólido. Hoje em dia vivemos o que convencionei chamar de modernidade líquida. Modernizamos hoje o que criamos ontem. E modernizamos não porque o modelo anterior tenha ficado velho ou obsoleto, mas porque o novo modelo é supostamente mais moderno. Isso virou um vício, uma obsessão. P: O senhor pode dar outros exemplos? Claro. Vou dar outro, um pouco mais drástico. Os jovens casais de hoje, por exemplo. Eles fazem de tudo para que o relacionamento seja breve, superficial e fugaz. Nada mais é para sempre. Se não gosto de você, simplesmente me desconecto. Se você não gosta de mim, a mesma coisa. Sem culpa, arrependimento ou explicação. Basta apertar um botão e pronto. Acabou! As pessoas têm medo de criar raízes, de se afeiçoar umas às outras. Sabem que novas oportunidades surgem a cada momento, e por esse motivo querem estar livres e desimpedidas para substituir o velho pelo novo. É como se o amor fosse um bem de consumo. Mas isso não significa, volto a dizer, que não existam corpos sólidos. Ou, se preferir, relacionamentos longos, estáveis e duradouros. Tudo é possível. Felizmente. P: No Brasil, seus livros já venderam algo em torno de 350 mil exemplares, um número bem expressivo para um sociólogo. Como o senhor vê isso? A que atribui tamanha popularidade? Não esperava por isso. Mas, até onde sei, esse fenômeno não acontece somente no Brasil. Também sou bastante popular em outros países, como Portugal, Espanha e Itália. Dia desses, aliás, estava conversando com dois amigos, também sociólogos, sobre a sociologia. A missão dela é mudar a sociedade humana e ampliar o horizonte dos cidadãos. Infelizmente, a sociologia nem sempre cumpriu seu papel. Quando foi criada, há uns 200 anos, era uma ferramenta usada para gerenciar o comportamento das pessoas. Como obrigar as crianças a ir à escola todos os dias e não apenas uma vez por semana? Como evitar que os soldados desertem do exército e fujam dos quartéis? Ou, então, que os operários entrem em greve e parem de trabalhar? O objetivo era deixar os indivíduos sem liberdade de escolha e, pior, torná-los responsáveis por todos os seus atos e movimentos. Ao longo dos anos, procurei, não sei se com sucesso, falar sobre sociologia, traduzir o mundo em textos, não para outros sociólogos, mas para as pessoas comuns. Meu objetivo é mostrar a elas que o mundo pode ser um lugar diferente e melhor do que ele é hoje. Acredito muito que, na medida do possível, cumpri minha missão. P: Em um mundo que é tão volátil como o nosso, como o senhor gostaria de ser lembrado no futuro? Isso é algum tipo de teste psiquiátrico? [risos] Bem, vamos lá: os filósofos antigos costumavam dizer que a receita para uma boa vida é vivê-la de tal forma que você consiga deixar suas pegadas no mundo. Acreditavam que só assim seremos lembrados. Confesso que não tenho a menor ambição de ficar imortalizado na memória das pessoas. Isso nunca me passou pela cabeça. Por outro lado, estou convencido de que podemos deixar nossas pegadas no mundo escrevendo sobre os prós e contras da sociedade em que vivemos. E, principalmente, dando aos homens a esperança de que, um dia, nossa sociedade possa se tornar um lugar melhor. Ou, pelo menos, um lugar um pouco mais “bom” e um pouco menos “mau”.
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