Artigo
Militarização Das Escolas Públicas: Soldado Ou Cidadão?
Militarização das escolas públicas: soldado ou cidadão?
REDACAO, 29 DE ABRIL DE 2019
Por Maria Picarelli
A militarização de escolas públicas, apresentada como alternativa para conter a indisciplina e, indiretamente, melhorar a aprendizagem, está no centro do debate educacional. A proposta foi bandeira da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018 e se tornou uma das prioridades do presidente para a área da educação. Tanto que o tema ganhou uma subsecretaria no Ministério da Educação (MEC) e foi objeto de um decreto do no “Diário Oficial” já no segundo dia de governo.
Assim sendo, a intenção do MEC é ganhar, voluntariamente, a adesão de estados e municípios ao modelo, mediante a oferta de recursos para a implantação de escolas em que militares e educadores compartilhem a gestão.
O Distrito Federal será o campo do projeto-piloto do governo federal. Em março, o MEC anunciou que vai destinar R$ 10 milhões para a criação de 36 escolas públicas militarizadas no DF, que se somam a outras quatro que já adotam o modelo desde o início do ano letivo de 2019. Como resultado, a meta do governo do Distrito Federal é chegar ao fim de 2019 com 40 escolas cívico-militares, o que corresponde a cerca de 6% da rede, composta por 693 unidades de ensino.
Ampliação
Com efeito, outros estados também anunciaram que pretendem implantar ou ampliar a oferta de ensino em escolas militarizadas, entre eles Rio de Janeiro, Roraima e Sergipe. Na Bahia, escolas de cinco redes municipais aderiram ao modelo, por meio de convênio entre a União dos Municípios da Bahia (UPB) e o Comando da Polícia Militar do estado.
As estimativas dão conta de que já existem cerca de 120 escolas públicas militarizadas em pelo menos 17 estados. Aliás, a maior parte delas está em Goiás, que concentra 60 unidades. A meta anunciada por Bolsonaro durante a campanha é instalar pelo menos uma unidade deste tipo em cada unidade da federação.
Embora a proposta esteja ganhando mais e mais visibilidade, ao mesmo tempo ela desperta dúvida e controvérsia, em função de seus fundamentos: a tese que sustenta o modelo de escolas cívico-militares é a de que a divisão de responsabilidades da gestão entre militares (cuidando da administração e da disciplina) e os educadores, responsabilizando-se pelas questões pedagógicas, promove a pacificação das escolas, estimulando, de maneira indireta, a melhoria da aprendizagem.
MEC vai destinar R$ 10 milhões para a criação de 36 escolas públicas militarizadas no Distrito Federal (foto: Luiz Tavares)
Colégios militares x escolas militarizadas
Em resumo, as escolas públicas militarizadas são diferentes dos colégios militares, pertencentes ao Exército. Ao todo, existem 13 colégios militares do Exército no país. Como define o Regulamento dos Colégios Militares, trata-se de “organizações militares que funcionam como estabelecimentos de ensino de educação básica”. Posto que, também segundo o documento, têm o objetivo de capacitar os alunos para ingressar em estabelecimentos de ensino militares, como as escolas de cadete.
Do ponto de vista pedagógico, o currículo é orientado por valores e tradições do Exército, tendo como meta possibilitar que o aluno incorpore valores familiares e patrióticos, bem como formar jovens autônomos e criativos. Também existem escolas militares geridas pelo Corpo de Bombeiros ou pela Polícia Militar nos estados, com finalidades e objetivos semelhantes.
As escolas públicas militarizadas possuem uma natureza diferente, pois estão sob a responsabilidade das secretarias estaduais ou municipais de educação e, normalmente, funcionam num sistema da gestão compartilhada entre militares e educadores.
Só para exemplificar, o principal argumento para incorporar militares à gestão de escolas públicas é a pacificação do ambiente escolar que estaria tomado pela violência, prejudicando o desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos.
A violência na escola
No entanto, se, por um lado, existem evidências de que as agressões e atos de violência presentes em diversas escolas criam um ambiente prejudicial ao desenvolvimento e à aprendizagem, por outro, a questão que surge é se a militarização configura-se como uma alternativa capaz de solucionar os conflitos que perpassam o ambiente escolar.
Análise da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra que em 55 países participantes do Pisa, em 2009, o desempenho dos estudantes tende a ser melhor onde o clima na sala de aula é mais propício à aprendizagem. De acordo com a organização, o clima escolar é uma das poucas características que apresentam associação significativa com o desempenho.
Os dados
Por conseguinte, no que diz respeito à incidência de violência na escola, segundo pesquisa coordenada pela socióloga Miriam Abramovay, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) divulgada em 2016, 70% dos alunos de escolas públicas nas capitais investigadas afirmaram que houve violência na escola nos últimos 12 meses.
O estudo – que envolveu 6.709 estudantes, de 12 a 29 anos, em sete capitais (Maceió, Fortaleza, Vitória, Salvador, São Luís, Belém e Belo Horizonte) – também revela que 42% dos entrevistados sofreram violência verbal ou física na escola e que 25% das ocorrências se dão na sala de aula.
Seja como for, os de violência mais comuns são discriminação, ameaças e xingamentos, muitas vezes com a roupagem de brincadeira. Agressões físicas e homicídios, caracterizados na literatura como “violência dura”, são mais raros.
Violência simbólica
“Concordamos que os professores não podem ensinar e os alunos não podem aprender em um ambiente permissivo, com altos níveis de incivilidades, disrupção, indisciplina. Contudo, em nome da busca pela disciplina, está sendo proposta como alternativa a adoção de um ambiente militarizado coercitivo, que traz consigo a violência simbólica”, questiona Telma Vinha, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela também é uma das coordenadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem), que reúne pesquisadores da Unicamp e Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Por certo, a questão levantada por Telma é umas das que estão no centro do debate e gerou reações como a Carta de Princípios sobre as escolas cívico-militares, assinada por 14 grupos de pesquisa ligados à Associação de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia.
Deste modo, entre os pontos destacados na Carta está o risco de a forte hierarquia e o controle disciplinar, típicos das estruturas militares, instaurarem um ambiente baseado em ordens e imposições, ao invés de fomentar a educação em valores – ou seja, estimulando a convivência respeitosa entre as pessoas, a formação de indivíduos autônomos, capazes de reflexão, crítica e escolha de valores em meio à diversidade.
As escolas públicas militarizadas são das secretarias estaduais ou municipais de educação e funcionam num sistema da gestão compartilhada entre militares e educadores (foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília)
Boa receptividade
Um argumento que pesa a favor da militarização são bons resultados alcançados pelas escolas que seguem o modelo. Esse é, segundo gestores, o principal fator que o torna bem aceito entre as famílias e comunidades no entorno das escolas. “Temos 60 escolas funcionando no modelo cívico-militar em Goiás e pretendemos levá-lo a outras 32 escolas. A proposta é muito bem aceita pelos pais e pela comunidade”, defende a secretária de Educação de Goiás, Fátima Gavioli.
Outro ponto que atrai a simpatia das famílias e comunidades é a mudança que o modelo militar opera no clima escolar. Esta é a opinião de Antonio Carvalho da Silva Neto, prefeito de Araci, município do semiárido baiano, que introduziu o modelo na maior escola da rede municipal este ano.
“A presença dos militares na escola permite a retomada de valores e comportamentos que estavam abandonados, como o respeito ao professor, cantar o hino nacional e mais disposição dos alunos para acompanhar as aulas”, afirma o prefeito, que também é vice-presidente da UPB. “Como a escola passa a ser organizada, os professores têm tempo e condições de dar aula”.
DF militarizado
No Distrito Federal, também é boa a aceitação das comunidades onde as quatro primeiras escolas militarizadas foram implantadas, afirma Mauro Oliveira, assessor especial da Secretaria de Educação do Distrito Federal, responsável pelo projeto. “Foram realizadas consultas e em todas elas a aceitação foi grande, tanto por parte dos pais quanto dos professores”, afirma ele.
A boa recepção, na opinião dele, estaria ligada ao fato de que essas escolas representam uma opção para famílias que querem que seus filhos estudem num ambiente organizado e favorável à aprendizagem, mas não contam com as mesmas opções disponíveis para quem pode pagar as mensalidades de um colégio privado.
Foco no problema
Em contrapartida, o Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF) divulgou nota contrária à medida, classificada como uma “maquiagem dos reais problemas da educação” e defende que o ideal seria criar mecanismos para atender todos os alunos de maneira democrática, sem concentrar recursos e investimentos em determinadas unidades da rede.
As quatro escolas militarizadas do Distrito Federal localizam-se em regiões vulneráveis e marcadas pela criminalidade, um dos pré-requisitos para a instalação das escolas cívico-militares: Cidade Estrutural, Recanto das Emas, Ceilândia e Sobradinho. Além disso, têm Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) abaixo da média.
Em 2017, nos anos finais do ensino fundamental, o Ideb do Distrito Federal foi 4,9 (inferior à meta prevista, 5,3). O Ideb da escola de Ceilândia incluída no projeto foi 3,1, e o da unidade da Cidade Estrutural, 4,1.
O (bom) desempenho em questão
Além da pacificação do ambiente escolar, uma das expectativas envolvidas nos projetos de militarização de escolas públicas é melhorar a aprendizagem e o desempenho dos alunos, refletido em indicadores como o Ideb.
Nesse sentido, o desempenho dos colégios militares nas avaliações oficiais funciona como um espelho: considerando todo o país, em 2017, o Ideb dos colégios militares no ensino fundamental 2 foi de 6,5, ao passo que nas escolas públicas a média foi de 4,1.
Em Goiás, onde as escolas cívico-militares existem desde 1999, os bons resultados no Ideb também servem como argumento em defesa do modelo. O Colégio Militar Dr. Cezar Toledo teve o melhor Ideb do estado em 2017, 7,5, no 9.º ano, bem acima da média nacional (4,7) e da média das escolas privadas (6,4). O bom desempenho se repete no ensino médio – 6,5 contra uma média nacional de 3,8.
A importância de contextualizar
No entanto, segundo analistas e pesquisadores, resultados como esses não podem ser interpretados de maneira isolada, já que o bom ou mau desempenho dos estudantes está associado a um conjunto de variáveis – entre elas, as condições e infraestrutura ofertadas, o que está diretamente relacionado com os investimentos. E neste quesito, os colégios militares estão em vantagem em relação às escolas públicas.
“Historicamente, os colégios militares possuem uma condição diferenciada das demais escolas públicas. São escolas que recebem investimentos bastante superiores às escolas públicas, atendem a dependentes de militares e destinam uma parte das vagas a processos seletivos para a comunidade”, contextualiza Denise Carreira, coordenadora institucional da organização Ação Educativa.
Dados oficiais indicam que um aluno de colégio militar custa três vezes mais do que um estudante de escola pública: segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), um aluno de escola pública custa cerca de R$ 6 mil ao ano, ante R$ 19 mil nos colégios militares.
Fatores externos e evidências
Outro aspecto relevante na análise do desempenho dos alunos dos colégios de modelo militar é o perfil do estudante. No caso dos colégios militares do Exército, geralmente os alunos são escolhidos por meio de processos, até mais concorridos que vestibulares: em algumas escolas, pode chegar a 270 candidatos por vaga. Por isso, tendem a atrair candidatos de nível socioeconômico mais alto, com mais condições de se preparar para as provas.
“Embora alguns optem por sorteio ao invés de processo seletivo, os colégios militares atraem um público menos marcado pelas desigualdades sociais do que aquele presente na maior parte das escolas públicas brasileiras”, complementa Denise.
Paralelamente, estudos nacionais e internacionais apontam que os resultados obtidos por alunos e escolas não podem ser interpretados de maneira isolada, pois dependem de um conjunto de fatores. Entre eles, as condições socioeconômicas são um parâmetro fundamental: desde o renomado Relatório Coleman, do nos Estados Unidos na década de 1960, pesquisas evidenciam a associação entre fatores extraescolares, sobretudo as características socioeconômicas e culturais dos alunos, e o acesso à educação e os resultados.
Diagnóstico e investimento
No Brasil, pesquisas como as desenvolvidas por José Francisco Soares, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atestam que a melhoria da estrutura da escola pode impactar positivamente o desempenho dos alunos. Aspectos como equipamentos, segurança, limpeza, qualidade das salas e do prédio, além da seleção de alunos, podem contribuir para ganhos do desenvolvimento cognitivo dos alunos.
Nessa direção, Denise Carreira, relativiza os resultados obtidos pelas escolas militares. “Se todas as escolas públicas recebessem o investimento financeiro que as escolas militares recebem, seria uma outra realidade.”
Outro parâmetro importante a ser considerado, quando se trata de políticas públicas, são as evidências sobre seus impactos e resultados. “Não é apenas uma questão de investimento, se determinada ação é viável ou não financeiramente. É preciso ter um diagnóstico claro do problema e saber se a estratégia escolhida é, de fato, a melhor para solucioná-lo”, analisa Davi Saad, diretor-presidente do Instituto Natura.
Nessa medida, ele argumenta que, tendo em vista a melhoria da aprendizagem, os programas de educação integral que vêm sendo implementados com sucesso em diversas partes do país poderiam ser mais efetivos.
Educação para quê?
A saber, a legislação educacional brasileira é outro aspecto que tem orientado o debate sobre as escolas cívico-militares. Aliás, um argumento usado por críticos do modelo é o de que ele contraria a legislação educacional brasileira.
A Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Plano Nacional de Educação (PNE), enfim, os principais instrumentos legais que norteiam a educação brasileira preconizam que a educação deve promover sujeitos autônomos e críticos.
Contudo, o modelo militar vai justamente contra essa concepção de educação, ancorada na legislação brasileira. Ao mesmo tempo, contraria o sentido do que é educação, na visão de estudiosos como Vitor Paro, professor titular aposentado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
“A educação não é transmissão de cultura, como se acredita no senso comum. Educação é a apropriação de conhecimentos, porque o indivíduo só aprende se tiver vontade e decide aprender”, analisa Paro. O desafio que se coloca para a escola, portanto, é propiciar condições para que a criança e o jovem queiram aprender. “Numa escola onde os estudantes querem e gostam de aprender não existe violência nem preguiça. É preciso levar o educando a querer aprender.”
A confusão
Esta é a chave para a educação em valores, segundo as pesquisas e os estudos realizados no Brasil e em outras partes do mundo. “Educar é diferente de treinar”, define Maria Suzana Menin, professora titular aposentada da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisadora-colaboradora da Fundação Carlos Chagas (FCC).
Coordenadora de diversas pesquisas sobre educação moral em escolas públicas, Suzana enfatiza que, muitas vezes, existe uma confusão entre a educação em valores e a educação moral, tratada como disciplina e obediência.
Segundo ela, o caminho pela disciplina, pela hierarquia, até pode levar uma pessoa a obedecer a uma ordem. “Mas nada garante que o valores envolvidos naquela ordem serão interiorizados pela pessoa, que ela se tornará consciente deles e passará a agir daquela maneira porque entende a importância daquilo.”
Em outras palavras, é diferente um estudante compreender que não pode agredir um colega negro porque respeita as diferenças e não cometer a agressão por medo de ser punido.
“A função da escola pública é formar cidadãos. A defesa da escola militarizada confunde os fins da educação definidos na legislação brasileira. A lei prevê a formação de um cidadão solidário, respeitoso e não de um cidadão que obedece às ordens”, afirma Suzana.
O prefeito de Araci (Bahia) vê na presença dos militares na escola a retomada de valores e comportamentos abandonados (foto: divulgação)
Cuidar da convivência
Em outras palavras, a militarização das escolas não se configura, necessariamente, como o único caminho para difundir valores morais e para a instauração de uma convivência respeitosa no ambiente escolar.
Outra via é o desenvolvimento de ações que permitam trabalhar e vivenciar, no cotidiano da escola, essas dimensões. Para isso, as questões morais têm de ser tratadas como parte do currículo, de modo que professores e demais educadores, juntamente com os estudantes, criem estratégias para prevenir a violência na escola. É assim que ocorrem em países como a Finlândia, onde o modelo de escola é baseado na autonomia de professores e alunos, ou na Espanha, onde, desde 2007, todas as escolas desenvolvem um plano de convivência, baseado em diagnóstico e com ações voltadas para a resolução de conflitos.
Engajamento coletivo
Nessa direção, Poços de Caldas está implantando um Plano de Convivência Ética nas 88 escolas da rede municipal, como parte do currículo. A iniciativa é considerada pioneira no país.
“A convivência respeitosa é um conteúdo tão importante quanto os outros”, analisa a secretária de Educação de Poços de Caldas, Flávia Vivaldi. Daí a formulação do plano, resultado de um processo de elaboração coletiva que já dura dois anos e envolve uma rotina de formações e o engajamento de professores e equipe técnica das escolas.
Partindo de um diagnóstico da situação das escolas, estão sendo traçadas ações e atividades para cada uma delas, além de mecanismos de monitoramento. “Como envolve toda a rede, não é um processo simples, da noite para o dia.”
Na visão da secretária, a segurança é necessária nas escolas, mas não é o suficiente para qualificar as relações na escola, chave para enfrentar e prevenir a violência. “Escola é espaço de trabalhar com as diferenças e não apenas com a hierarquia e obediência”, defende.
Fonte:
https://revistaeducacao.com.br/2019/04/29/militarizacao-das-escolas/
Como funciona um colégio militar no Brasil?
Você sabe o que é um colégio militar? Nas eleições de 2018 uma das propostas para a educação defendida pelo atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, era a militarização das escolas. No seu ponto de vista, a implantação em nível nacional de colégios militares iria diminuir a violência no contexto escolar e garantiria um melhor desempenho nesses ambientes. Neste post, o Politize! explica o que é e como funciona esse modelo de ensino!
O que é um colégio militar?
Podemos defini-lo como uma escola pública de educação básica (ensino fundamental e ensino médio) em que militares do Exército Brasileiro, da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros e de outros órgãos da segurança pública desempenham as tarefas diretivas e administrativas. No Brasil, esta categoria de ensino é regulada pela Lei n° 9394 de 20 de dezembro de 1996, também conhecida como Lei de Diretrizes e bases da educação, em seu artigo 83.
O primeiro colégio militar no Brasil surgiu ainda no período imperial no Rio de Janeiro, em 1889, após o Decreto Imperial n° 10.202 assinado por D. Pedro II e era dedicado aos filhos, do sexo masculino, dos militares brasileiros. Desde então, essa modalidade de ensino se expandiu, garantindo também o acesso a discentes do sexo feminino e aos filhos de civis.
No contexto atual, o crescimento dos últimos anos, de acordo com uma pesquisa realizada pela Época, corresponde a cerca de 212% alcançando 14 estados da federação. Dentre estes, o maior índice é representado pelo estado de Goiás.
Como funciona? No que ele difere do ensino civil?
Como já citado, em uma escola militar a direção e administração são exercidas por oficias. Nesse sentido, o corpo docente é formado por professores da rede pública de ensino e militares que possuem magistério específico. Ademais, os objetivos pedagógicos são preparar o aluno para a vida em sociedade, formar cidadãos que atuem com ética e cidadania guiados pelos valores, costumes e tradições do Exército Brasileiro.
Desse modo há o enaltecimento da disciplina, do patriotismo, do civismo, da hierarquia e da ordem referenciando o modelo tradicional de ensino. Vale ressaltar que existe ainda um manual de regras que obrigatoriamente devem ser seguidas à risca pelos alunos. As mais famosas são o corte de cabelo para os meninos e o não uso de brincos, esmaltes e maquiagens de qualquer tipo para meninas, a continência a militares e o canto diário do hino nacional. É importante lembrar que as normas variam entre as instituições.
A diferença relativa ao ensino civil envolve vários setores. No âmbito econômico, o setor público chega a investir aproximadamente R$ 19 mil por ano por cada estudante, valor três vezes mais caro que o de um aluno do ensino cívico regular, o qual em média custa apenas R$ 6 mil de investimento.
Contudo, as escolas militares não são totalmente gratuitas, muitas delas cobram taxas equivalentes ao uniforme característico ou para a manutenção de serviços.No que se refere a resultados pedagógicos, estas instituições, assim como os Institutos Federais e as escolas técnicas, apresentam bons desempenhos no Ideb (Índice de Educação Básica) e no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Como são selecionados os alunos?
Para fazer parte do quadro de discentes de um colégio militar é necessário ser aprovado em um processo seletivo, uma espécie de mini vestibular, realizado todos os anos para alunos do 6° ano do ensino fundamental e do 1° ano do ensino médio. Geralmente, as provas cobram assuntos da área de linguagens, matemática e conhecimentos gerais.
Na relação do número de vagas, um percentual é destinado a filhos de oficiais e a parte restante aos membros da sociedade civil.
Ensino militar: argumentos contra e a favor
Existe um provérbio francês o qual cita: “o povo que possui as melhores escolas é o melhor entre todos os povos”. Sob tal perspectiva, tendo em vista a situação em que se encontra a educação brasileira, vários são os debates que buscam defender o mais adequado modelo de ensino para alcançar, com êxito, uma educação digna.
Para melhor entender o que salvaguarda os defensores de cada preceito veja a seguir alguns argumentos contra e a favor do ensino militar:
A favor da militarização das escolas
- O modelo atual de ensino público falhou em garantir um ambiente pacífico propício ao desenvolvimento intelectual do discente. Nesse sentido, a disciplina e ordem dos militares visa diminuir as significativas taxas de violência contra alunos e professores.
- As escolas cívicas têm se distanciado de valores como o patriotismo, o civismo e da disciplina.
- As regras não são arbitrárias, o aluno juntamente com os responsáveis está ciente das normas exigidas nesses ambientes.
- Os colégios militares apresentaram bom desempenho e boa estrutura com notas acima da média nacional de acordo com o Ideb (Índice de Desenvolvimento de Educação Básica).
- O Estado fracassou em oferecer educação pública de qualidade e em alguns estados como no Amazonas e em Goiás, nos quais adotou a militarização das escolas obteve bons resultados.
Contra a militarização das escolas
- O modelo fere os princípios da educação, ao exigir a disciplina militar se distancia dos valores plurais e democráticos defendidos pela Constituição.
- Adotar o modelo militar de ensino, o qual segue a técnica Foucaultiana do “Vigiar e Punir”, é ir na contramão das grandes potências mundiais. Nas últimas décadas, estas têm empregado os padrões democráticos inspirados nas propostas de educação de Paulo Freire. Como exemplo, tem-se a escola estadunidense Revere High School, uma das melhores do país.
- A gestão diretiva implica na efetividade da escola e exige formação específica. Dessa forma, não faz sentido introduzir organizações de segurança pública para a administração de instituições escolares uma vez que o inverso da situação não acontece.
- A cobrança de mensalidade é inconstitucional pois viola o princípio de gratuidade do ensino público estabelecido no artigo 206 inciso IV da Constituição Federal de 1988.
- No século XXI, é ilógico exigir do aluno regras subjetivas como o corte de cabelo para meninos ou a não utilização de maquiagem e acessórios para as meninas. Tal característica viola o estado de direito do estudante.
- Os dados de desempenho que comparam os alunos de colégios militares e escolas comuns são paradoxais posto que para aderir ao quadro de discentes das instituições militarizadas é necessário passar antes por uma seleção. A esse respeito, quando relacionadas a institutos comuns em que os estudantes possuem perfil semelhante observa-se um desempenho similar.
Entendeu como funciona um colégio militar no brasil? Qual modo é mais favorável para obter o melhor ensino e garantir a efetividade na educação do nosso país?
Rahellen Miguelista Ramos
Tem 17 anos e é acadêmica de Direito da Universidade Estadual do Maranhão. Acredita que através da oferta de conhecimento sobre educação e política seja possível que o brasileiro concretize, genuinamente, a sua função cidadã.
Publicado em 30 de setembro de 2019.
REFERÊNCIAS
Agência Brasil – Enem: federais, militares e técnicas são as escolas públicas mais bem avaliadas – Educadores analisam plano do MEC para educação básica e criticam proposta de escolas cívico-militares – Educa mais Brasil – Tudo sobre o colégio militar – Epoca – Número de escolas públicas militarizadas no país cresce, sob o pretexto de enquadrar os alunos – Folha de S.Paulo – Escolas Militares e Colégios civis com perfil semelhante tem desempenho similar – Nova Escola – Michel Foucault, um crítico da instituição escolar – Senado-Lei de Diretrizes e Bases da educação – Uol Notícias-Bolsonaro quer um colégio militar em cada capital até 2020
Fonte:
https://www.politize.com.br/colegio-militar/
O que são e como funcionam as escolas militarizadas
Estêvão Bertoni27 de fev de 2019(atualizado 02/03/2019 às 01h17)
Modelo de colégios para civis geridos por policiais é defendido por Ricardo Vélez Rodríguez, e ministério criou subsecretaria para expandi-lo no país. Para pesquisadora, disciplina criada é falsa
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FOTO: DIVULGAÇÃO/COMANDO DE ENSINO POLICIAL MILITAR DE GOIÁS
ALUNOS DO COLÉGIO ESTADUAL DA POLÍCIA MILITAR DE GOIÁS NIVO DAS NEVES, EM CALDAS NOVAS
Durante uma audiência pública realizada no Senado nesta terça-feira (26), o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, defendeu a militarização voluntária das escolas públicas no país.
“Quem tiver preocupações com a militarização, ou que a criança não ri, convido para que visite uma cidade de Goiás que tenha uma escola cívico-militar. É fantástico. Os bons resultados são palpáveis. Não há esse tal de militarismo não. Há educação cívica e educação da prática das normas, da lei. O professor é respeitado. O professor entra na sala e todos ficam em pé”, afirmou.
Segundo ele, o Brasil tem “muito a lucrar” com o modelo, que não exige investimento. “São escolas municipais que optam em ter uma administração dada por policiais ou, em outros Estados, pelas Forças Armadas. Não sai caro para o município, que encontra uma maneira de dar melhor destinação às suas instalações e ter um bom rendimento acadêmico”, diz o ministro.
O governo Bolsonaro chegou a criar a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares. O objetivo da pasta é criar programas didático-pedagógicos e modelos de escolas “de alto nível” para os ensinos fundamental e médio, que podem ser adotados por municípios e estados de forma voluntária.
Em seu programa de governo registrado durante a campanha presidencial, Jair Bolsonaro chegou a prometer que implantaria, em até dois anos, um colégio militar em cada capital do país.
O que são as escolas militarizadas
São colégios públicos, de ensino fundamental e médio, cujas gestões foram transferidas para instituições militares, como a Polícia Militar. O modelo tem sido amplamente usado em Goiás desde o governo de Marconi Perillo (PSDB), eleito pela primeira vez em 1999, e ganhou destaque por ter melhorado o desempenho dessas instituições nos exames nacionais.
Ele só foi possível de ser implantado porque uma lei estadual criada em Goiás durante a ditadura militar, em 1976, previa uma diretoria de ensino dentro da Polícia Militar. Essa diretoria foi criada em 1987, mas apenas em 1998 teve alteradas suas finalidades e pediu autorização para oferecer ensino fundamental e médio. Em sua origem, porém, a lei não previa escolas militares dedicadas ao ensino de civis. Foi apenas em 2001 que a instalação e a transferência das escolas estaduais para a PM foi legalizada no estado.
Um levantamento do jornal Folha de S.Paulo, de 2015, mostrou que existiam 93 escolas militarizadas no país, a maioria delas em Goiás (26) e Minas (22). Em 2018, apenas três anos depois, outro levantamento feito pela revista Época mostrava que 122 escolas do tipo estavam em funcionamento. Entre 2013 e 2018, segundo a ção, o aumento dessas instituições foi de 212%.
Só em Goiás, atualmente, são 46 escolas administradas pela Polícia Militar, que é responsável por 53 mil alunos.
A disciplina
Um estudante de uma escola gerida pela polícia em Goiás não pode deixar de cortar o cabelo ou usar costeletas. Também está proibido de andar com as mãos nos bolsos ou falar, sem permissão do tenente coordenador, com o comandante ou o diretor do colégio. Entrar na instituição com “pincéis atômicos ou similares que possuam poder de pichação” resulta em punição. As restrições constam das diretrizes gerais do Colégio Ayrton Senna, em Goiânia.
A disciplina é a principal marca desse modelo. O colégio da PM em Anápolis (GO), por exemplo, possui 88 especificações de transgressões, divididas em três categorias, segundo seu regulamento.
Transgressões leves
- Perturbar o estudo dos colegas, com ruídos ou brincadeiras
- Comparecer aos trabalhos escolares sem o material necessário
- Ingressar nas salas de coordenação ou dos professores sem autorização
- Deixar de comunicar à coordenação a mudança de endereço e/ou telefone
- Usar óculos com lentes ou armações de cores esdrúxulas, mesmo sendo de grau, boné, tiaras, ligas coloridas ou outros adornos, quando uniformizados
- Mascar chiclete ou similares nas dependências da escola
- Comparecer a aluna a qualquer atividade com as unhas fora do padrão
Transgressões de natureza média
- Ter em seu poder, introduzir, ler ou distribuir, dentro do colégio, ções, estampas ou jornais que atentem contra a disciplina, a moral e a ordem pública
- Deixar de cortar o cabelo na forma regulamentar ou tingi-lo e/ou apresentar-se com barba, ou bigode por fazer e costeleta fora do padrão
- Apresentar-se com o cabelo fora do padrão, deixando-os soltos, com pontas ou mechas caídas (alunas), ou tingido de forma extravagante
- Abandonar qualquer atividade recebida para o qual tenha sido escalado
- Executar mal, intencionalmente ou por falta de atenção, tarefa a que lhe tenha sido atribuída
- Travar discussões com membros da comunidade escolar
- Deixar de prestar a devida continência aos militares
- Dirigir memoriais ou petições a qualquer autoridade, sobre assuntos da alçada do comandante
- Espalhar boatos ou notícias tendenciosas
- Negar-se a colaborar ou participar nos eventos, formaturas, solenidades, desfiles ou promoções oficiais do colégio
- Apresentar parte ou recurso sem seguir as normas e preceitos regulamentares utilizando termos desrespeitosos, com argumentos falsos ou de má-fé
Transgressões graves
- Faltar com a verdade e/ou utilizar-se do anonimato para a prática de qualquer transgressão disciplinar
- Comunicar-se com outro aluno ou utilizar-se de qualquer meio não permitido durante qualquer instrumento de avaliação
- Deixar de zelar pelo bom nome do colégio
- Denegrir o nome do colégio ou de qualquer de seus membros
- Desrespeitar em público as convenções sociais
- Instigar colegas ao cometimento de transgressões disciplinares ou ações delituosas que comprometam o bom nome do colégio
- Provocar ou disseminar a discórdia entre colegas
- Provocar ou tomar parte, uniformizado ou estando no colégio, em manifestações de natureza política
- Utilizar ou subtrair indevidamente objetos ou valores alheios
- Se envolver em rixa, agredir física ou moralmente integrante da comunidade escolar ou qualquer outra pessoa
- Manter contato físico que denote envolvimento de cunho amoroso (namoro, beijos etc) quando devidamente uniformizado, dentro ou fora do colégio
- Ofender membros da comunidade escolar com a prática de bullying e cyberbullying
- Desrespeitar os símbolos nacionais
Para essas transgressões, o colégio estabelece diferentes sanções.
- Transgressões leves: advertências
- Transgressões médias: repreensão e suspensão da sala de aula
- Transgressão grave: suspensão da sala de aula, assinatura do TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) e, em última instância, expulsão (chamada de “transferência educativa”).
As contribuições
Embora sejam estaduais com gestão da PM, elas recebem contribuições dos pais dos alunos (podem variar de R$ 80 a R$ 110), não obrigatórios. Eles precisam ainda arcar com o custo do uniforme dos filhos (que também pode variar de R$ 400 a R$ 700).
A defesa do modelo
Em entrevista à Folha, em 2015, o então comandante de ensino da PM de Goiás, Júlio César Mota Fernandes, afirmou que a aplicação do modelo havia sido solicitada pelos próprios pais dos alunos.
Para ele, a militarização levou os colégios aos primeiros lugares do Enem no estado (em 2014, nove Estados tiveram escolas da PM em 1º lugar no exame; em 2016, os sete melhores lugares da rede pública de Goiás no Enem eram ocupados por colégios militarizados), e a disciplina eliminou a “perda de tempo” que acontecia, por exemplo, quando estudantes conversavam em sala de aula e não prestavam atenção ao professor. Também era, em sua opinião, um modo de prevenir a criminalidade.
A polícia nega que exista autoritarismo. “A nossa escola não é um quartel. Queremos dar o direito às crianças de serem crianças, ouvir os estudantes e suas indagações, sempre cuidando para manter a autoridade sem autoritarismo”, disse ao site Nova Escola o coronel Ubiratan Reges de Jesus, diretor do colégio Major Oscar Alveólos, em Goiânia.
O tenente-coronel Thélio Alexandre Araújo Amorim, comandante e diretor do colégio Vasco dos Reis, em Goiânia, afirmou à Época que a polícia introduz “valores” aos colégios. “É um modelo onde defendemos nossas teses, nossas convicções, sendo mais uma opção educacional no estado e no Brasil”, diz. Segundo ele, ninguém é forçado a aderir ao modelo. “Eu não boto uma faca na costela do aluno para obrigar ele a vir para a escola. Ele vem porque quer.”
As críticas à militarização
Uma das autoras do trabalho “A expansão dos colégios militares em Goiás e a diferenciação na rede estadual”, ao lado de outras duas pesquisadoras, a professora da Universidade Estadual de Goiás Mirza Seabra Toschi, que é pós-doutora em educação pela Universidade de Brasília, diz que o modelo cria uma falsa disciplina baseada na repressão. Em entrevista ao Nexo, ela lamenta que o governo queira expandir o modelo para todo o país, em vez de investir nas escolas regulares.
O que as escolas militares têm de diferente das outras?
MIRZA SEABRA TOSCHI Uma das coisas fundamentais e que apontam como uma diferença positiva é a disciplina. E também os bons desempenhos nos exames nacionais. Essa disciplina não é consciente. Ela é conseguida através do estímulo de um elemento repressor. Os policiais trabalham nas escolas armados, e os alunos têm que fazer continência. Eles trabalham de revólver dentro da escola. A disciplina não é um elemento real. Se você tira o elemento repressor, a chamada indisciplina volta.
Ela se baseia no medo?
MIRZA SEABRA TOSCHI Eu considero que sim. Uma criança vê um adulto muito maior do que ela com uma arma de fogo, com revólver, e tem que fazer continência, que é o reconhecimento real da autoridade. Quando o governo passa as escolas da Secretaria de Educação para a Secretaria de Segurança Pública, ele escolhe os melhores prédios, e os professores todos são efetivos. Eles atuam na área de formação, o que não é uma coisa que existe em todas as escolas. O estado de Goiás tem uma falta muito grande de professores, são cerca de 10 mil professores. É muito comum nas escolas estaduais ver professores atuando fora da área de formação. Nas escolas militares não acontece isso. Então, eles recebem os melhores prédios, os professores supostamente mais bem-preparados. Eles cobram dos alunos, embora digam que é opcional. Os alunos fazem como se fosse uma doação, porque eles criaram isso para burlar a gratuidade da escola pública.
E como se justifica o pedido por dinheiro?
MIRZA SEABRA TOSCHI As escolas são reformadas, pintadas. Imagine uma escola de 1.000 alunos, que cobra cerca de R$ 120, R$ 150, ela tem quase R$ 15 mil por mês. Uma escola que recebe esses recursos tem muito mais condições. Inclusive eles dão uma gratificação para os professores. Os professores acham bom, porque o salário já é baixo. Eles recebem o prédio, não pagam os professores, porque quem continua pagando é o Estado, e eles cobram dos alunos.
Uma coisa que também é importante e que acaba sendo um elemento de seleção do estudante é o uniforme. O uniforme é farda, caríssima, cerca de R$ 800. Na escola pública regular, não se pode cobrar nada, nem R$ 10 de um aluno para poder comprar papel.
Além de tudo, uma coisa que eu considero grave é o desvio de função da Polícia Militar. A PM tem como função garantir a ordem pública. E cada escola militar tem cerca de 30, 32 militares ocupando cargos. Os diretores perdem a sua função e passam a ser professores e todos os gestores são militares, que recebem gratificações muito altas. Se um professor de uma escola regular ocupa o cargo de direção recebe uma gratificação de acordo com o tamanho da escola, com o número de alunos matriculados, e isso chega no máximo a R$ 1.500. A gratificação de um militar pode chegar a R$ 5.000. No total, nós tínhamos mais de 1.300 militares trabalhando em escolas, e isso faz falta nas ruas, para manter a segurança pública.
Então o modelo está centrado na disciplina, e não na forma de ensinar?
MIRZA SEABRA TOSCHI Os meninos cortam cabelo igual ao policial militar, as meninas têm que usar o cabelo em coque, não pode ter brinco, só se for aquela bolinha, como se fosse uma gotinha. Não pode usar anel, não pode mascar chiclete. Quer dizer, a escola passa a ser um quartel. A escola perde a sua dinâmica de trocas, de debates, os alunos têm que seguir a hierarquia militar, a obediência cega.
Outro elemento de diferenciação é que ele acaba atendendo o aluno de melhor poder aquisitivo. Se você olhar no site do Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica], onde tem as notas do MEC, as escolas militares têm notas melhores que as regulares. Isso não é geral. Porque os colégios dos institutos federais têm notas maiores que os colégios militares e não têm essa disciplina. Eles têm bons professores, que têm bons salários, e eles têm notas muito maiores. E você vai ver a nota do Ideb, existe um índice socioeconômico das famílias [Indicador de Nível Socioeconômico das Escolas de Educação Básica, o Inse]. O estudante do colégio militar tem um Inse muito mais alto porque a família tem um poder aquisitivo muito maior. Eles medem esse Inse de acordo com a renda familiar, os bens que a família tem, geladeira, telefone, quantos computadores [em casa]. Se forem comparados os Inse dos colégios militares e os das escolas públicas regulares, os das escolas militares é muito maior. Ela faz uma seleção já na entrada para as famílias que dão conta de comprar uniforme. Depois, se o aluno dá trabalho para ele, eles convidam o aluno a sair. Eles fazem uma expulsão do aluno. A gente tem vários casos de aluno com paralisia infantil, que puxava a perna e não conseguia fazer sentido, porque antes de entrar eles têm que ficar em formação, e o menino não conseguia marchar. E eles decidiram retirar o menino. Não se vê lá como se vê na escola pública aluno cadeirante, com deficiência mental, com desvio de atenção. Porque a escola pública atende o direito do indivíduo à educação. Como princípios da educação na Constituição e na LDB [lei de Diretrizes e Bases], vou citar dois: a gratuidade da escola pública e a gestão democrática da escola. A escola militar, quando vai fazer seu regimento, tira esses dois princípios.
Mas os policiais vão para dentro das salas de aula?
MIRZA SEABRA TOSCHI Não, os professores são da escola pública, mas são extremamente vigiados. A vigilância é completa. Tem câmeras nas salas e nos corredores.
Eles têm liberdade de fazer críticas?
MIRZA SEABRA TOSCHI Dificilmente. Porque eles se sentem vigiados, tem policiais andando nos corredores.
Eles interferem nos conteúdos ensinados?
MIRZA SEABRA TOSCHI É uma proposta de controle de conteúdo e de posicionamento de professor. Como se todos tivessem que pensar igual, descumprindo a nossa Constituição que fala que a escola é um lugar do pluralismo de ideias.
Tem sentido usar esse modelo em alguns casos?
MIRZA SEABRA TOSCHI Eu acho que escola militar pode ser para filho de militar ou para quem quer seguir carreira militar. Os colégios militares do Exército são para filhos de militares e estudantes que queiram seguir carreira. Então, é compreensível. Eles não são tão rígidos como as escolas militares aqui de Goiás. Tem hierarquia. Mas ter hierarquia não significa que ela precise ser truculenta.
E outra coisa: o civil que tem direito à escola pública acaba sendo excluído dessa escola. A escola pública regular acaba sendo marginalizada, por todos os defeitos. Para mim, é uma desobrigação do Estado. O Estado se desobriga a arrumar as escolas, de fazer concursos para professores, de ter salários atraentes, para poder resolver o problema de ter uma escola pública de qualidade. Então, eles passam para a Polícia Militar, a PM fica com os melhores e acham que estão resolvendo um problema, mas não estão.
Alguns modelos foram adotados em lugares violentos com a justificativa de que ajudaria a combater esse problema.
MIRZA SEABRA TOSCHI O discurso é esse. A narrativa para poder justificar a implantação da escola militar é essa. Mas a violência, do lado de fora da escola, continua. Se fosse isso, os militares teriam que ser alocados nas ruas. Aqui em Goiás tem mais de 1.300 militares alocados nas escolas. Por que não coloca um em cada escola para fazer a vigilância? Uma ideia é comparar os índices de violência das cidades para ver se diminui, mas não diminui. Pra mim, é falso. É só para poder justificar a criação. Você não justifica a criação dentro da escola, para formar pessoas.
Eu sou professora formadora de professores. Os estudantes que vêm da escola militar não conseguem viver a liberdade do ensino superior, da universidade, de terem uma disciplina intelectual interna, por eles mesmos. Eles sentem falta do elemento repressor. Se não tiver alguém vigiando, são do tipo que tentam enganar o professor. Não resolve o problema. Acaba sendo uma formação falsa. A disciplina na escola tem que ser intelectual, pessoas discutindo, falando, ela é dinâmica. Ela está tendo uma disciplina intelectual, embora possa ter algum ruído. A disciplina não é falta de ruído.
O MEC está discutindo a expansão desse modelo. Como avalia a proposta?
MIRZA SEABRA TOSCHI Acho péssimo. As escolas funcionam; o que precisa é distribuir recursos para as escolas. Efetivamente cuidar de todas as escolas. Porque se a educação de qualidade é um direito da pessoa, as escolas têm que oferecer as mesmas condições para todas. Eles repassam os custos para as famílias. E os recursos que pagam de gratificações dos militares poderiam estar sendo gastos para melhorar as escolas, para fazer reformas. Você vai a uma escola regular comum, ela está caindo aos pedaços, os banhe