Artigo
Não É Preciso Parar Na Velhice
Não é preciso parar na velhice
Especialistas ressaltam a importância do envelhecimento ativo, mesmo diante de limitações físicas e cognitivas. Moradores de Brasília mostram que é possível. E que faz bem
Alegria de viver
Paloma Oliveto
A agenda de Marlene Cerqueira, 82 anos, é tão apertada quanto a de um executivo. Da hora em que acorda à que vai dormir, ela está sempre envolvida com atividades da Associação dos Idosos Paz e Amor do Cruzeiro Velho, centro de convivência que preside. Railda Cândido Azevedo, 79, também não gosta de ficar parada. De segunda a sexta-feira, passa as manhãs na academia. Pela tarde, supervisiona as obras do apartamento em que mora, encontra os amigos, faz palestras motivacionais e planeja seu hobby favorito: viajar. Já o casal Vanilda e Jorge Dias, 70 e 66 anos, respectivamente, valoriza o encontro com a família, o trabalho voluntário na igreja e as noites de dança, uma paixão que os dois nutrem. Para todos eles, envelhecer não é o fim da vida, mas o início de um novo ciclo.
Série 'Esquecida mente'. Clique na imagem e vá para o índice.
Nesta série de reportagens, o Correio revela os desafios de ser idoso em um mundo que, embora cada vez mais longevo, ainda supervaloriza a juventude, voltando as costas a uma parcela significativa da população. Na opinião de especialistas, pouco se faz pela saúde mental de homens e mulheres que passaram dos 60 anos — problemas como depressão, dependência química e suicídio crescem nas faixas etárias mais avançadas, e as políticas públicas não acompanham essa escalada.
Se o retrato da assistência à saúde mental na velhice parece sombrio — não à toa, optou-se por r as páginas da série de reportagens Esquecida mente em preto e branco —, os idosos mostram que essa fase da vida pode ser colorida. O envelhecimento ativo, um conceito cunhado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e ainda desconhecido da população brasileira, parte do princípio de que a idade não deve excluir o indivíduo da sociedade. Ser ativo, nesse caso, é mais do que fazer caminhadas matinais. É manter a autonomia, fugir do isolamento, desafiar a mente, mesmo que existam limitações físicas e cognitivas.
Vanilda e Jorge valorizam encontros com a família, o trabalho voluntário na igreja e as noites de dança
Prevenção de doenças
“O envelhecimento ativo ou saudável é um processo que envolve prevenção e controle de doenças, o cuidado com comportamentos de saúde, estar em atividade, produtividade e participação social, exercitar a memória e o raciocínio, ter objetivos e metas”, enumera a pedagoga e mestre em gerontologia Wanda Patrocinio, autora do artigo Atividades práticas para o envelhecimento ativo, do na Revista Kairós Gerontologia, da Universidade de São Paulo (USP). “Deve-se romper com o preconceito de ‘ser coitadinho’ e aceitar o idoso na qualidade de cidadão com necessidade de acolhimento, compreensão, liberdade para realizar seus desejos, participar de decisões familiares, proteção de riscos e promoção da saúde”, ensina Raimunda Magalhães da Silva, coordenadora do doutorado em saúde coletiva da Universidade de Fortaleza.
Pesquisas mostram que estimular o cérebro com atividades sociais evita ou retarda o declínio da mente (leia entrevista abaixo). Além disso, pode prevenir a depressão, um mal que, no Brasil, afeta principalmente a faixa dos 60 aos 64 anos e que está associado a problemas como demência, dependência química e suicídio. Uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com 264 idosos que se dedicavam a tarefas como trabalho voluntário em igrejas, escolas ou associações, jardinagem e cuidados com animais mostrou que 69,3% deles estavam satisfeitos com a vida, mesmo no caso de sofrerem de algum problema de saúde. Outro estudo recente, da Universidade do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul, indicou que a prevalência de sintomas depressivos é menor em idosos que trabalham, participam de grupos, fazem trabalhos manuais, leem e costumam conversar com amigos.
Marlene Cerqueira sabe a importância desses hábitos. Ela começou a frequentar a Associação dos Idosos Paz e Amor do Cruzeiro Velho na década de 1980 para acompanhar a mãe. De lá para cá, vivenciou muitas perdas, incluindo a de um filho, que morreu aos 34 anos, do marido e da irmã, de quem era muito próxima. “As perdas são todas dolorosas, mas de um filho não tem igual. O apoio do grupo foi o que me deu força. Eu tinha de preencher meu tempo com alguma coisa para não sofrer tanto”, conta. Depois de viúva, Marlene resolveu que já passava da hora de aproveitar mais a vida. “Eu cuidava de casa, marido e filho, e esquecia de mim. Agora, minha agenda é cheia”, diz. De acordo com ela, o estereótipo da velhice está ultrapassado. “Já foi o tempo em que a pessoa envelhecia, pegava um terço e ia fazer crochê. Hoje, a terceira idade quer se divertir, aproveitar o resto da vida.”
Railda, em aula de dança: “Quero morrer com 120 anos”
Exercícios e viagens
Essa também é a filosofia de Railda Cândido Azevedo. A assistente social aposentada participa de organizações não governamentais, viaja para o mundo todo, sai com os amigos e ainda faz hidroginástica, dança, alongamento e musculação. “Participo de tudo, mas meu forte é viajar. A gente esquece das coisas ruins da vida, conhece novas culturas. A viagem traz bons resultados para a mente e o corpo”, ensina Railda, que conhece lugares como Austrália, Japão e Vietnã. Eventualmente, ela faz palestras motivacionais, inclusive para idosos. “Falo que temos de ter alegria de viver. É muito importante rir, ter amigos, participar de eventos, atividades sociais. O contato com os outros faz a pessoa ser mais feliz”, acredita. Aos 79 anos, ela ainda quer viver muito. “Meu pai morreu aos 97, e minha mãe, aos 107. Quero morrer com 120.”
Vanilda Alves Dias viu no envelhecimento a oportunidade de levar a vida com mais leveza. Ela é professora aposentada e, quando estava na ativa, trabalhava em tempo integral. “No tempo de trabalho, eu era muito mais impaciente, mais nervosa”, conta, com serenidade. Ela e o marido, Jorge, gostam de sair para dançar, participar de encontros sociais, viajar e servir como voluntários na igreja. Mãe de um casal de filhos, Vanilda valoriza os momentos com a família, que, de acordo com ela, é muito unida. “A vida da gente é maravilhosa, por que tem de ficar constrangida e triste com a idade? O envelhecimento é experiência adquirida, é vivência, é um aprendizado contínuo”, ensina. Marlene Cerqueira concorda: “Quando a gente sabe viver, o envelhecimento é muito bom”.
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Entrevista
Com Eliane Golfieri Dias
Estima-se que, em 2050, mais de 100 milhões de pessoas tenham Alzheimer, doença neurodegenerativa que, ao destruir os neurônios, compromete seriamente a cognição. Embora não exista cura para o mal, a boa notícia é que pesquisas indicam um impacto positivo de atividades da vida diária, como ler e se reunir com amigos, na proteção da mente.
Um desses trabalhos, Atividades avançadas de vida diária e incidência de declínio cognitivo em idosos: Estudo SABE, do no Cadernos de Saúde Pública, demonstrou que idosos inativos têm risco 2,15 vezes maior de declínio cognitivo, comparado àqueles que se envolvem em atividades com frequência. A pesquisa foi feita com dados de 819 moradores de São Paulo, acompanhados ao longo de quatro anos.
Em entrevista ao Correio, a principal autora do artigo, a terapeuta ocupacional Eliane Golfieri Dias, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), defende mais investimentos em opções culturais, educativas, lúdicas, sociais e corporais a idosos. “O importante é aprendermos coisas novas diariamente, enriquecer nosso cotidiano”, diz.
De que forma as atividades avançadas de vida diária (AAVDs) protegem o cérebro do declínio cognitivo?
As AAVDs são compostas por três grupos de atividades: sociais, produtivas e de lazer. Elas envolvem concomitantemente várias funções cognitivas complexas físicas, psicológicas, sociais e cognitivas. Isso faz com que nosso cérebro seja estimulado constantemente em situações de resolução rápida de problemas, seja com atividades físicas, com novos desafios do trabalho ou com atividades de lazer manual que nos ocasionem prazer e bem-estar. Novas vias neuronais são estimuladas e desenvolvidas e, assim, teremos maior reserva cerebral em casos de perdas cognitivas. Pensemos que os sintomas do declínio cognitivo demorarão mais a aparecer e a velocidade dessa perda poderá ser diminuída.
Para que essa proteção ocorra, é preciso que essas atividades sejam desenvolvidas ao longo de toda a vida ou há benefícios mesmo para aqueles que se tornam mais ativos depois da velhice?
Começar o quanto antes é nosso desafio. Vale a pena, ainda que essas atividades sejam iniciadas aos 60,70 ou 80 anos”
Existem vários estudos que referem a preservação de nossa capacidade de aprendizagem durante toda a vida e que toda essa experiência se acumula com o passar dos anos. O quanto antes começarmos a desenvolver um estilo de vida saudável com atividades que cuidem de nosso corpo, nosso cérebro e nosso afeto melhor será para nossa saúde cognitiva. Mas, apesar de termos maior facilidade para realização de atividades baseadas nas experiências corporais e cognitivas praticadas durante a vida, nosso corpo também é capaz de se beneficiar de novas atividades e trazer ótimos benefícios. Começar o quanto antes é nosso desafio. Vale a pena, ainda que essas atividades sejam iniciadas aos 60,70 ou 80 anos.
Existem atividades que parecem proteger mais contra o declínio cognitivo do que outras?
A literatura científica atual refere benefícios das atividades avançadas de vida diária de cunho intelectual, que exijam leitura, concentração, resolução de problemas. Já ouvimos falar muito de palavras-cruzadas, sudoku, jogos de tabuleiro, leitura diária. A escolaridade é o principal fator de proteção contra declínio cognitivo. Entretanto, também temos inúmeros benefícios para a cognição e o humor vindos das atividades sociais, realizadas com amigos ou em grupos, como frequentar cursos, dançar, cantar, viajar, participar de uma comunidade ou igreja. A troca de experiências é muito rica e obtemos fontes de apoio importantes para lidarmos com nossos problemas cotidianos e nos sentirmos pertencentes a um grupo. As atividades avançadas são altamente complexas e promovem várias fontes de estimulação cerebral. O importante é aprendermos coisas novas diariamente, enriquecer nosso cotidiano.
Como os estudos que evidenciam a importância das AAVDs podem contribuir com políticas públicas voltadas a idosos?
No nosso estudo, as probabilidades de declínio cognitivo entre as pessoas com baixa escolaridade (até três anos de estudo) e alta escolaridade (oito anos ou mais de estudo) foram semelhantes para as pessoas que realizavam frequentemente oito ou mais atividades avançadas. Necessitamos de fontes de estimulação diversificadas, já que as atividades avançadas de vida diária envolvem uma extensa gama de atividades, cujo envolvimento se dá a partir dos interesses da pessoa.O abandono de atividades prazerosas, muitas vezes, está associado a perdas funcionais e/ou quadros depressivos. Assim, programas de atividades devem levar em consideração fatores como escolaridade, condições socioeconômicas, sensoriais, físicas e mobilidade. É preciso que o idoso tenha maior visibilidade no desenvolvimento de ações de promoção à saúde, próximas à sua comunidade e que leve em consideração suas possibilidades e interesses. Maior investimento na promoção da saúde cognitiva requer busca ativa dos idosos e a oferta de um grande rol de atividades culturais, educativas, lúdicas, sociais e corporais. (PO)
Fonte: http://especiais.correiobraziliense.com.br/nao-e-preciso-parar-na-velhice