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“Novas configurações das cidades ameaçam a apropriação do espaço público e o pertencimento dos cidadãos”, acredita Saskia Sassen
As grandes cidades têm adquirido, cada vez mais, novas configurações, colocando em risco a convivência e apropriação do espaço público e acirrando desigualdades e polarizações, com distânciamentos cada vez maiores entre centro-periferias. Essa tendência têm sido observada pela socióloga holandesa Saskia Sassen, referência mundial na área da sociologia urbana, que compartilhou sua visão sobre o tema na conferência de abertura do Seminário Internacional Cidades e Territórios: encontros e fronteiras na busca da equidade.
A professora da Universidade de Columbia (EUA) iniciou a sua fala destacando que, antes de mais nada, é preciso redescobrir o que são de fato as cidades e a necessidade de se proteger esse conceito, pois a cidade transforma a todos em sujeitos urbanos. “Uma imagem que representa isso é a hora do rush, em que os cidadãos tentam pegar um trem. Há uma mistura e aproximação de classe, gênero, raça etc. Nesse momento somos todos sujeitos urbanos. Portanto, iguais”, ressaltou, enfatizando que é preciso ouvir a cidade, pois ela tem voz.
“Mas nós perdemos a capacidade de entender como a cidade, com a complexidade do espaço, pode falar conosco e transformar as coisas. Um exemplo é o carro super potente que, quando chega ao Centro da cidade, deixa todos os seus potenciais e anda como uma bicicleta. Aí a cidade falou”.
Analisando os movimentos que dispontaram as novas configurações metropolitanas, a socióloga chamou atenção ao fato de que está ocorrendo uma desurbanização das grandes cidades, com a chegada de megaempreendimentos multinacionais que ocupam boa parte de um território, eliminando suas ruas, vielas, praças etc.
“Há, portanto, um impacto direto na vida dos cidadãos, pois a cidade é um local onde as pessoas sem poder aquisitivo também podem ter história, cultura e gerar economia, mesmo que seja numa comunidade específica. E isso não é possível de se fazer dentro de um empreendimento. Assim, quanto mais projetos de grande porte, mais essa possibilidade é tirada das nossas mãos”, enfatizou.
A construção desse cenário vem sendo motivado, nos últimos anos, pela ampliação de compra de propriedades urbanas. Só em 2015, mais de R$1 trilhão de dólares em todo o mundo foram usados para compra de propriedades nas 100 principais cidades do mundo, incluindo São Paulo. Com isso, os imóveis têm adquirido grandes valores, gerando uma crise imobiliária de casas mais modestas e fazendo com que a população tenha que se deslocar para regiões cada vez mais periféricas para conseguir comprar ou alugar um imóvel.
“Se um professor, um enfermeiro ou um bombeiro precisa se deslocar mais de duas horas para ir de casa ao trabalho por conta disso, então temos um problema. Em Nova Iorque, por exemplo, o governo está pagando um valor a mais a estes profissionais para que possam morar um pouco mais perto do Centro da cidade e não gastem tanto tempo em deslocamento. Enquanto isso, os empreendimentos de luxo estão com as luzes apagadas. Isso é uma grande distorção do que a cidade deve ser”, comentou, explicando que isso ocorre porque atualmente a melhor forma de fazer investimento é comprar propriedades em grandes cidades.
Outro ponto fundamental a ser discutido, na opinião da socióloga, deve ser o aspecto imaterial destas propriedades, ou seja, o que está invisível e que merece atenção. Isso porque muitas terras nas quais construções históricas estão instaladas e que são patrimônios nacionais estão passando para mãos de empresas estrangeiras.
Saskia destacou ainda que, apesar do espaço urbano estar sob ameaça, com centenas de estradas construídas, aquisição de imóveis, dificuldades habitacionais etc, há um movimento surgindo nas localidades a fim de favorecer as economias locais, como comércios, cooperativas, microempreendimentos, microcrédito etc, e que é preciso fortalecê-los.
Um caminho para tal é incentivar o desenvolvimento de iniciativas – envolvendo universidades, organizações sociais, órgãos públicos etc – que, a partir da identificação das necessidades locais, preparem os cidadãos para atuarem nestes campos.
E perguntou ao público: “Será que precisamos de fato de uma multinacional para tomar um cafezinho, quando temos pequenos cafés nas cidades que estão lá há gerações? Todas as franquias ao invés de ajudar a circular o recurso no território, leva-o para a sua sede”.
Ao final, a socióloga retornou à sua fala inicial sobre o fato da cidade nos tornar sujeitos urbanos e questionou: “E por quê isso tudo importa? É porque a cidade é um dos poucos espaços em que as pessoas podem ser atores e realizadores. A cidade tem a capacidade de permitir que as pessoas que estão mais ou menos alienadas comecem a sentir que também fazem parte disso. É preciso que esse sentimento de pertencimento apareça”, disse Saskia.
Saskia Sassen quer enfrentar as “terras e águas mortas”
A socióloga que cunhou o termo “cidades globais” observa: pobres estão sendo empurrados, cada vez mais, para áreas contaminadas e fétidas. Uma saída seria repovoar áreas rurais abandonadas. Mas nada se deve esperar do “capitalismo verde”
Saskia Sassen, em entrevista traduzida pelo IHU Online
Saskia Sassen (Haia, 1947) é professora da Universidade Columbia, em Nova York, membro do Comitê de Pensamento Global desta universidade e Prêmio Príncipe das Astúrias de Ciências Sociais – 2013. É especialista em globalização, desigualdade e “cidades globais”, termo que cunhou em 1991.
Nesta entrevista, aborda um assunto a respeito do qual não costuma ser muito perguntada: a mudança climática. Em um espanhol perfeito, com sotaque argentino, uma das cinco línguas que domina, e com uma grande proximidade, a conversa passa por diferentes aspectos da crise que ameaça nossa sobrevivência como espécie.
Eis a entrevista
Considera que os termos politicamente corretos ou os generalistas podem fazer com que evitemos a responsabilidade coletiva. Prefere falar de “terras e águas mortas” em vez de, ou além de, simplesmente “mudança climática”. Por quê?
Basicamente porque em muitas situações precisamos de uma linguagem mais brutal. Precisamos de uma linguagem que comunique diretamente a brutalidade de nossos sistemas econômicos em relação à capacidade de destruir águas, terra, qualidade do ar… Modalidades de construção que contêm materiais nocivos e destrutivos para a nossa saúde.
Por que a linguagem com a qual abordamos este assunto importa tanto?
Provavelmente, não importa para aqueles que reconhecem a importância do que está acontecendo, mas continuamente me deparo com situações, eventos e indivíduos que se esquecem de toda a questão do meio ambiente. Não é que não estejam inteirados sobre os detalhes…, é que simplesmente o esquecem, não o pensam, não o discutem, não falam sobre isso.
Seu próximo livro tem como título “A ética das cidades”. Pode nos dizer algo sobre ele?
Ah, sim! Esse é o meu novo projeto. Para dizer brevemente: uma ética da cidade é inevitavelmente uma ética incompleta, porque a cidade está cheia de desigualdades, injustiças, etc. O desafio para mim é entender, em primeiro lugar, como construir uma ética imperfeita na cidade, como lidar com esta diversidade.
Fala-se muito em “cidades verdes”. O que são e até que ponto representam uma solução para a mudança climática?
Provavelmente, no momento, tudo o que podemos fazer em nossas cidades é maximizar o verde e tudo aquilo que possa absorver as influências negativas no ar, nas águas, na construção, etc… Mas acredito também que iremos mudar a modalidade urbana para a tornar mais compatível com um uso mais inteligente de tudo o que precisamos em uma cidade, de materiais ao tráfego.
Em um relatório recente, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento defende cidades inteligentes climáticas para reduzir as emissões de uma maneira “eficiente”. No entanto, alguns denunciam que as cidades inteligentes estão substituindo a busca por uma justiça ecossocial por soluções macrotecnológicas que, na realidade, poderiam reforçar as desigualdades já existentes. O que diz a respeito disto?
Concordo que tais elementos negativos estarão em jogo: curamos o elemento A, mas para fazer isso destruímos o elemento B. Este tipo de contradição será difícil de eliminar. Por isso, acredito que será crucial uma mudança nos tipos de materiais para a construção, para fazer ruas, para o transporte, etc.
Junto às tendências especulativas, privatizantes, competitivas e individualizantes, as cidades começam também, especialmente a partir da última crise, a ser espaços de experimentação cooperativa, solidária, sustentável e equitativa. As cooperativas de bicicletas, hortas urbanas e mercados locais são sementes de uma mudança muito maior?
Parece-me que sim. O interessante para mim é que são modalidades modestas, como a bicicleta, que em suas diferentes opções se tornam muito úteis. Agora, vemos bicicletas que são quase como carros por tudo o que carregam, mas não são carros, são bicicletas e, portanto, não possuem as emissões dos carros, caminhões e aviões.
Como imagina a cidade ideal?
Honestamente, não tenho esse tipo de fantasia. Não há cidade perfeita ou ideal, embora quase todas as cidades tenham algo que apoia aqueles que nelas vivem, e abrem as imaginações de muitos, gerando inovações, fazendo arte… há uma longa lista de opções que as cidades nos oferecem.
Na Espanha, que foi um país de tradição rural até os anos 1960, temos um problema de despovoamento rural, a chamada “Espanha vazia”. Que riscos vê nesta tendência?
Sim, estas são mudanças importantes que podem ser muito negativas, é verdade. Mas eu também vejo algo que pode ser positivo: gera espaço aberto, muitas vezes, muito mais barato do que foi há alguns anos e, por conseguinte, facilita que ao menos alguns possam apostar em uma vida mais rural, com capacidade de produzir produtos frescos para consumidores locais, em vez de ter que os comprar de empresas internacionais, que muitas vezes aumentam os seus custos.
Além disso, cada vez que um povoado se soma à lista de povoados abandonados se perde todo um sistema de conhecimentos tradicionais. Que implicações a perda de diversidade, não só biológica, mas também cultural, podem ter?
Parece-me que isto está mudando. Há toda uma série de emergências positivas em jogo para que cada vez mais famílias jovens possam viver em situações menos urbanas do que as das grandes cidades… não digo que vivam no campo, mas, sim, em contextos com áreas verdes, árvores, águas, e comunicações mais ou menos funcionais. Penso que algo está mudando em termos dos interesses de muitas famílias jovens e também de jovens empreendedores.
Avalia que a população que atualmente vive na chamada “Espanha vazia” poderia ser compreendida dentro da categoria “expulsos”?
Em parte, sim… mas com o passar do tempo, ninguém sabe como serão chamados. Pode ser que sejam vistos como os novos inovadores, que souberam entender que sair das grandes urbes foi a coisa mais inteligente que puderam fazer [risos].
Em seu livro “Expulsões”, dedica um capítulo inteiro, “Terras mortas, águas mortas”, às degradações causadas pelos abusos de empresas industriais e mineiras. Poderia comentar sobre algum dos casos que conheceu que mais a indignou?
Ah, sim, isto se tornou um tema importante para mim. Meu objetivo nesse caso foi expor um grande número de destruições de terras e águas, algumas em pequena escala e outras em grande escala. O efeito geral é o de uma perda enorme de habitat. Encontrei desde habitats que ainda têm vida até habitats que estão morrendo e habitats que já estão mortos, definitivamente mortos. Interessou-me muito nessa pesquisa entender o que é uma “terra morta” e pisar com meus próprios pés em terras mortas de todos os tipos.
Fonte: https://tropicomovimento.com.br/clipping/2020/saskia-sassen-quer-enfrentar-as-terras-e-aguas-mortas