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Qual o quadro de insegurança alimentar no Brasil da pandemia ?
Qual o quadro de insegurança alimentar no Brasil da pandemia ? Estudo conduzido no fim de 2020 mapeou a parcela dos lares brasileiros que enfrenta fome ou acesso irregular a comida A situação de insegurança alimentar já atinge mais da metade dos lares brasileiros, segundo o estudo “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenado por um grupo de pesquisadores da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília. Segundo o levantamento, em 15% dos domicílios há privação de alimentos e fome. Divulgada na terça-feira (13), a pesquisa foi realizada por meio de entrevistas com 2.004 pessoas. Mais de 59% dos domicílios entrevistados passaram por situação de insegurança alimentar no último trimestre de 2020. A porcentagem representa 125,6 milhões de brasileiros. O acesso da população brasileira a alimentos importantes para a dieta regular também caiu significativamente: 44% reduziram o consumo de carnes e 41% diminuíram o consumo de frutas. A conclusão da pesquisa é de que as instabilidades socioeconômicas foram agravadas pela pandemia, acentuando desigualdades alimentares, especialmente o acesso a alimentos saudáveis de forma regular e em quantidade e qualidade suficientes. “Há três anos, quando submetemos a proposta do projeto, o Brasil vivia uma situação muito diferente da de hoje. Ainda que naquele momento já tivéssemos evidências da piora da situação da segurança alimentar e nutricional, o país ainda era referência nas suas políticas e gestão de promoção da segurança alimentar.” Os números da nova pesquisa são superiores aos apresentados no dia 5 de abril pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, que já mostrava dados alarmantes: segundo o levantamento, 116,8 milhões de brasileiros conviveram com algum grau de insegurança alimentar nos últimos três meses de 2020 e 19 milhões enfrentaram a fome no último trimestre de 2020. Para além dos efeitos da pandemia em 2020, na avaliação da socióloga Renata Motta, líder do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça, o quadro é agravado por decisões políticas que desde 2016 contribuíram para a redução de iniciativas governamentais que tentam reduzir a insegurança alimentar no Brasil. Ela cita como exemplos as extinções do Ministério de Desenvolvimento Agrário, em 2016, e do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável, em 2019. “O que estamos vivendo são as consequências dessas escolhas”, afirmou durante o evento de divulgação da pesquisa. Em setembro de 2020, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou dados sobre a insegurança alimentar no país a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares, que foi realizada entre junho de 2017 e julho de 2018. Na época, o resultado já apontava que o número de famílias brasileiras que vivem em insegurança alimentar tinha voltado a crescer, após anos de queda. Segundo o IBGE, em 2013, a porcentagem de famílias brasileiras que viviam com insegurança alimentar era 23%. Entre 2017 e 2018, esse número saltou para quase 37%. Como o estudo foi feito A pesquisa foi realizada por meio de ligação telefônica entre os dias 21 de novembro e 19 de dezembro de 2020. Para pegar uma amostra representativa da sociedade brasileira com base em estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2020, foram entrevistadas 2.004 pessoas. Foram feitas oito perguntas da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (também usada pelo IBGE), por meio das quais, segundo o levantamento, é possível captar a segurança e a insegurança alimentar entre os adultos do domicílio. “Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que os moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar mais comida?”, era uma das perguntas feitas pelos pesquisadores. Caso a resposta do entrevistado para pelo menos uma das perguntas fosse “sim” ele já se encaixava no padrão de insegurança alimentar. O que é insegurança alimentar O conceito de insegurança alimentar é empregado quando não há acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem que isso necessariamente comprometa o acesso a outras necessidades essenciais. O levantamento mapeou o quadro desse problema entre novembro e dezembro de 2020. GRADAÇÃO DA VULNERABILIDADE
O estudo usou definições do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística): Como a vulnerabilidade se manifesta pelo Brasil Além de revelar uma frequência alta de insegurança alimentar nos lares brasileiros no período da pandemia, o levantamento mostra como marcadores de desigualdade de gênero, raça ou cor, renda, contextos regionais e territoriais tornaram domicílios mais suscetíveis à insegurança alimentar. A análise dos resultados por região brasileira mostra que em todas elas mais de 50% da população vive algum grau de insegurança alimentar. A região Nordeste, no entanto, é a que tem uma frequência mais alta de pessoas nessa situação: 73,1%. A pesquisa também descobriu que a insegurança alimentar é maior nos domicílios nas áreas rurais do que nas urbanas. São 75,2% de insegurança alimentar nas áreas rurais — sendo que o nível grave atinge 27,3% das casas. “A pandemia de covid-19 chega no mundo e, em particular, no Brasil, no momento de redução da nossa capacidade de resposta estatal, dada a fragilidade fiscal do nosso país e de uma economia que dava passos muito lentos e muito graduais de recuperação, mas com ainda aprofundamento da pobreza e da desigualdade. Isso é uma consequência, quase uma lei que nós vivemos quando temos crises econômicas: os setores mais pobres da nossa sociedade são os que mais sentem. E sentem de forma mais imediata e rápida e são os que levam mais tempo para se recuperar desse processo” O papel do auxílio emergencial Em 2020, o auxílio emergencial pagou cinco parcelas mensais de R$ 600 entre abril e agosto de 2020. O auxílio foi reduzido para R$ 300 entre setembro e dezembro, período em que a pesquisa sobre a segurança alimentar do brasileiro foi realizada. O número de beneficiários diretos do auxílio foi de 67,9 milhões de brasileiros e o valor total transferido pelo governo, de R$ 293,1 bilhões. Ele foi encerrado em 31 de dezembro e retomado em abril de 2021 com valor e alcance mais baixos. Além de prover um valor para subsistência na recessão, o benefício também ajudou temporariamente a diminuir a desigualdade de renda e a reduzir a pobreza no Brasil a níveis historicamente baixos. Os resultados da pesquisa confirmam que o programa social criado durante a pandemia de covid-19 foi destinado às famílias em maior situação de vulnerabilidade social e que sem ele a insegurança alimentar teria sido ainda maior. Entre os entrevistados, 52% contaram com ao menos uma parcela do auxílio emergencial, sendo que 63% deles destinaram o dinheiro para comprar comida e 27,8% utilizaram o benefício para pagar contas básicas e dívidas. Alimentos saudáveis e não saudáveis A pesquisa avaliou a frequência no consumo de alimentos saudáveis (naturais e minimamente processados) e não saudáveis (ultraprocessados). Houve uma redução relevante no consumo de alimentos saudáveis durante a pandemia. Entre os entrevistados, 44% relataram que diminuíram a compra de carnes, 40,8% a de frutas, 40,4% a de queijos e 36,8% a de hortaliças e legumes. 18,8% foi o aumento do consumo de ovo durante a pandemia. Foi o alimento que teve maior crescimento no último trimestre de 2020. Segundo os pesquisadores, esse aumento pode estar relacionado à substituição da carne Durante a pandemia, houve uma redução de mais de 85% no consumo dos alimentos considerados saudáveis entre os entrevistados que integram domicílios em situação de insegurança alimentar. A redução foi significativamente menor entre os entrevistados em situação de segurança alimentar (entre 7% e 15%). Antes da pandemia, os domicílios em insegurança alimentar já tinham um padrão alimentar menos favorável. Eles consumiam de forma irregular (menos de cinco vezes por semana) carnes (72,6%), hortaliças e legumes (67,2%), frutas (66,5%) e queijos (62,5%).