Artigo
“Quando Vamos Trabalhar Normalmente Outra Vez?”
“Quando vamos trabalhar normalmente outra vez?”
Micheline Alves26 de Abril de 2020
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Não se deixar paralisar pela angústia é a meta dos médicos na linha de frente do combate à pandemia
“Nessa manhã, acordei – asfixiava-me. Foi-me horror. Faltava-me o simples ar, um peso imenso oprimia-me o peito. Eu estava sozinho, a morte atraíra-me até aqui – sem amor, sem amigos, sem o poder de um pensamento de fé que me amparasse. O ar me faltava, debatia-me em arquejos, queria ser eu, mal me conseguia perguntar, à amarga borda: há um centro de mim mesmo? Tudo era um pavor imenso de dissolver-me.”
Médico formado em 21 de dezembro de 1930 – o registro segue no acervo da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais – João Guimarães Rosa abandonou a profissão após breves anos de exercício, mas ela permeou muitos de seus textos, como o trecho destacado acima. Parte do conto “Páramo”, escrito em Bogotá quando Rosa, já diplomata, viveu sozinho a 2.600 metros de altitude, o texto descreve os efeitos da soroche, como os andinos chamam o mal-estar provocado pela rarefação do oxigênio em altitudes como aquela.
A descrição caberia perfeitamente à vítimas da Covid-19, uma gente a definhar com aguda falta de ar e absurda solidão em leitos de hospital – isso quando há leitos disponíveis. Mas tamanha angústia caberia também para descrever os que hoje cuidam desses pacientes: médicos que, imersos nos covidários, as áreas de atmosfera altamente contagiosa reservadas aos enfermos da pandemia, se vêem reduzidos ao “desamparo de menino indefeso”.
A pandemia é totalmente diferente de tudo o que médicos, mesmo os mais experientes, poderiam imaginar. “A ficção fica acanhada perto do que a realidade apresenta”, diz o carioca Márcio Maranhão, cirurgião e autor de “Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro” (Foz, 2014), livro que deu origem à série homônima da TV Globo, da qual ele é co-roteirista. A obra escancara suas dificuldades em serviços públicos como o Samu, onde atuou como plantonista percorrendo favelas e vivenciando cenas de guerra, e em hospitais como o Souza Aguiar, descrito por ele como uma versão brasileira do inferno de Dante.
Astronauta
Maranhão hoje atua em dois hospitais: um da rede privada, onde é o gestor do centro cirúrgico, e um hospital público de elite – o HFAG (Hospital de Força Aérea do Galeão), onde chefia a equipe de cirurgia torácica e onde começou a usar as roupas antes usadas apenas em treinamentos militares. Não é um detalhe banal: as condições para trabalhar à beira do leito vestido feito um astronauta aumentam em muito as dificuldades das equipes.
Tente se imaginar dentro do macacão semi-impermeável que cobre o corpo do médico da cabeça aos pés, deixando de fora apenas o rosto, sobre o qual o médico coloca seus óculos de grau e, depois eles, os óculos de proteção e duas máscaras – uma do tipo N-95, para se proteger dos aerossóis (as microgotículas que o paciente lança no ar) e outra cirúrgica. Por cima de tudo, um escudo de acrílico. As mãos ganham luvas duplas, presas à roupa com esparadrapos para que nem um centímetro de pele fique à mostra. Quente e desconfortável, o uniforme traz ainda o enorme inconveniente reduzir a visualização do procedimento. Imaginou?
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A proteção infalível cria um dilema: protege de contaminação, mas gera uma demora inaceitável em situações em que é preciso ser ágil, como as intubações e, último recurso para salvar pacientes que mal respiram, as traqueostomias em que Maranhão é especialista. Diante das dificuldade de adaptação, ele adotou a paramentação mais comum –também em conformidade com as recomendações da OMS. Essa é só uma entre as decisões que ele precisou tomar sem perder tempo, em um contexto de alta tensão.
Quando eu estava no Samu ou entrava nas favelas, o medo era muito palpável, real, tinha uma cara. O medo de hoje é o de contaminar meus pais, as pessoas vulneráveis. Ou ficar doente por qualquer descuido. Ou ver meus colegas caírem
“Quando eu estava no Samu ou entrava nas favelas, o medo era muito palpável, real, tinha uma cara. O medo de hoje é o de contaminar meus pais, as pessoas vulneráveis. Ou ficar doente por qualquer descuido. Ou ver meus colegas caírem.” E há o medo, claro, de ter que fazer a escolha de quem terá um respirador, como aconteceu em países onde o sistema de saúde entrou em colapso – e já que acontece, por exemplo, em Manaus, onde faltam médicos e onde pacientes em estado grave esperam por uma vaga de UTI.
Para ele, a fase mais crítica ainda não chegou. O número absoluto de pacientes graves deve começar a ficar maior agora. “Você ouve os colegas e os relatos vão se repetindo: ‘estou com seis pacientes Covid; agora estou com 12; não, agora estou com 15. Com 23. Com 38. Com 42′. A gente vê que a curva está subindo rápido.” É uma conta que o presidente da República e seu time parecem não compreender, e diante da qual fica difícil conter a ansiedade. “A fragilidade emocional é imensa. Há um cansaço físico e uma incerteza muito grandes. Quando vamos trabalhar normalmente outra vez?”, se pergunta o médico.
Avalanche
É preciso estar muito íntegro para lidar com tamanha carga de sofrimento e preocupação. A geriatra Lenita Balbino, que é também especialista em cuidados paliativos, aprendeu isso na prática – no seu caso, 25 anos de prática – mas também afirma que, mesmo com toda a experiência, este é o pior momento da sua carreira. Definidos pela OMS em 1990, os cuidados paliativos são a modalidade de assistência que cuida de doentes crônicos, cuja enfermidade está em progressão – como o câncer em suas formas mais agressivas. Como geriatra e paliativista, Lenita tem inúmeros pacientes idosos ou em tratamento oncológico, portanto, dentro do maior grupo de risco para a Covid 19.
O primeiro paciente geriátrico que ela perdeu nas últimas semanas era um senhor de 80 anos, viúvo e com quatro filhos, que ela já acompanhava há anos. Ele pegou o coronavírus de um cuidador, assintomático. Dos primeiros sintomas à hospitalização foi tudo muito rápido. Impedidos de fazer visitas, os familiares tentavam videochamadas. Quando o quadro se agravou muito, a médica tomou uma decisão arriscada: pediu autorização da direção da clínica e se responsabilizou pela entrada de um dos filhos no covidário. O pai o reconheceu e teve tempo de dizer o último “eu te amo, meu filho”. A família é toda gratidão à doutora pelo gesto. Lenita não se arrepende, mas teve muito medo: e se o filho pega a doença?
Lenita diz ter demorado uns 10 anos até se dar conta da ansiedade que sentia e da responsabilidade que estava em suas mãos nessa profissão. “Prestar atenção nos sintomas dos outros é mais fácil”. Ela considera avassaladores os sentimentos que médicos absorvem e carregam, muitas vezes sem perceber. “A verdade é que na nossa formação principal, a gente não recebe subsídios para lidar com isso.”
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Resiliência
De fato, as altas doses de ansiedade na vida de um médico têm início quando eles ainda são alunos do curso de Medicina, um dos mais concorridos no mundo todo e no qual eles ficam expostos continuamente a inúmeros fatores de estresse físico e psicológico – da alta demanda das disciplinas ao contato precoce com a morte e o sofrimento de pacientes. Vários estudos apontam para uma prevalência de distúrbios emocionais entre esses estudantes, quando comparados com a população geral na mesma idade e com universitários de outras áreas.
Os dados, a própria experiência de estudante da Universidade de São Paulo nos anos 1990 – que o psicanalista Silmar Gannam define como “sofrida” – e os anos como professor no hospital universitário da USP o levaram a aprofundar o assunto na tese de doutorado “O Mal-estar na Formação Médica: uma Análise dos Sintomas de Ansiedade, Depressão e Esgotamento Profissional e suas relações com resiliência e empatia”, de 2018. “Meninos que eram doces no início da faculdade chegavam à fase de residência com uma dureza, uma frieza que chamava a atenção”, diz.
É uma análise parecida com a de Moacyr Scliar (1937-2011), outro escritor imortal dividido entre a literatura e a carreira de médico, ao falar sobre a trajetória acadêmica: “Ao entrar no curso de Medicina, nós somos adolescentes de classe média sem muito conhecimento da realidade ou da condição humana. De repente estamos lidando com cadáveres e passando por experiências que nos abalam profundamente”.
Cuidar de quem cuida é uma noção relativamente nova. Sem direito de serem vulneráveis, estudantes e médicos se tornam cada vez mais doentes
Na pesquisa de Gannam, 1350 alunos de 22 escolas médicas brasileiras responderam a questionários que revelaram índices elevados de ansiedade, depressão e burnout, termo que define o esgotamento profissional. Uma hipótese para tal quadro está na origem desses estudantes. Por mais que o perfil das universidades do país esteja mudando, com o ingresso de alunos de baixa renda, ainda predominam nas escolas de Medicina jovens brancos, com condição social privilegiada e bom histórico escolar. Quando essa turma chega à faculdade, o destaque com que estão habituados desaparece: ali estão todos nivelados. Vão todos tirar notas mais baixas em alguma disciplina, vão todos lidar com muita competitividade e vão todos enfrentar o fantasma de “não poder falhar” – uma ilusão, como gosta de repetir o médico mais popular do Brasil, Drauzio Varella. Para ele, quem procura essa profissão imbuído do desejo de salvar vidas vai se frustrar, já que a lista de doenças para as quais não existe cura é interminável: “Curar é finalidade secundária da medicina, se tanto; o objetivo fundamental de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano”.
Cuidar de quem cuida é uma noção relativamente nova, mas a saúde mental das equipes de saúde são preponderantes pra se enfrentar qualquer crise. Sem direito de serem vulneráveis, estudantes e médicos se tornam cada vez mais doentes – ou, tragicamente, se somam ao alarmante número de suicídios na categoria. Por outro lado, Gannam observou nas respostas dos participantes da pesquisa um alto grau de resiliência e sentimento de recompensa. “Entendi que um fator de proteção é a realização profissional; a percepção do papel fundamental que um médico tem na sociedade.” A pandemia de Covid19 ressalta essa noção diariamente, no mundo inteiro. Para muitos, para além da dor, este é um momento de reafirmação da vocação profissional. A sensação de que, afinal, “eu fiz medicina para isso”.