A origem da democracia remonta a um contexto de privilégios. No berço da Grécia Antiga, só eram considerados cidadãos os homens livres nascidos nas cidades-Estado, todos os demais que não se enquadrassem nessas condições estavam excluídos do conceito. Entretanto, após milênios de desenvolvimento de institutos representativos e regimes políticos democráticos, as Casas Legislativas brasileiras ainda não demostram uma representatividade expressiva de todos os grupos sociais, tornando parcela da população subrepresentada.
Antes, para melhor entendermos qualquer modelo social existente, é preciso compreender que este é produto de um momento histórico no qual se vive – ou seja, é possível, mas limitante, entender qualquer ideia sem antes perpassar pelo contexto histórico que lhe deu origem. Neste conteúdo, será explicado sobre gênero e política, cotas eleitorais de gênero e problemas enfrentados pela comunidade LGBTQIA+ nos espaços públicos de tomada de decisão.
Assim, primeiro, com o objetivo de compreender como o espaço político se voltou ao debate de gênero, é importante fazer breves esclarecimentos deixados pela teoria feminista, essa que foi a primeira a analisar o gênero e sua relação com as instituições públicas. Vamos lá?!
Gênero e o mundo político
Segundo a Teoria Política, a definição moderna de cidadania representativa surgiu das Revoluções Burguesas dos séculos XVII e XVIII e foi responsável por colocar as pessoas no centro das relações sociais do espaço público por pregar que todos são iguais. Para o filósofo Foucault, todo discurso político tem em si uma justificativa.
Uma das funções da Teoria Política Feminista é analisar os espaços da vida pública utilizando o gênero como método de interpretação com a finalidade de entender como a figura do gênero se relaciona com os campos da vida política. Segundo Ramos (2014), esta teoria prega que até mesmo a definição do que é política e qual modelo de cidadania deve ser adotado é produto da visão de mundo masculina.
Para Carole Pateman, importante teórica política, apesar dos princípios filosóficos liberais de igualdade e fraternidade, o processo de formação da cidadania moderna renegou através de mecanismos jurídicos, políticos e sociais o direito das mulheres de participarem da condução dos negócios públicos.
Foi baseado em estudos médicos e psiquiátricos que por muito tempo se acreditou na ideia do aspecto biológico, por exemplo, para atribuir à condição feminina a inferioridade na participação e condução da vida política. À prova disso, ainda é a dicotomia existente da esfera pública – considerada masculina – e privada – considerada feminina.
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Para o filósofo Foucault, as diferentes formas de pensar e agir no espaço público surgem do confronto direto entre ideologias opostas. Nesse sentido, foram vários os movimentos que buscaram pela ampliação da representatividade no parlamento – um importante evento, no Brasil e em vários países do mundo, por exemplo, foi o Movimento Sufragista que culminou com a inclusão do voto feminino na Constituição de 1932.
As cotas eleitorais de gênero
A legislação eleitoral do Brasil, como forma de diminuir a sub-representatividade de gênero, vem implementando regras que visam o aumento significativo de candidaturas dos segmentos minoritários nas eleições proporcionais de suas Casas Legislativas.
Na visão de Gomes (2020), entende-se por cota eleitoral de gênero como a ação afirmativa que visa “espaço mínimo de participação de homens e mulheres na vida política do País”, em obediência aos valores da cidadania e no pluralismo político, enquanto fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Desde o ano de 1997, a Lei das Eleições é a responsável por expandir as noções sobre ações afirmativas eleitorais e participação política. Após uma série de alterações legislativas, atualmente, determina o seu art. 10, §3º que as cotas de gênero sejam aplicadas nas Câmeras Legislativas Municipais, Assembleias Estaduais e Câmara dos Deputados, na proporção de 30%, devendo serem preenchidas desde a oficialização do pedido de registro de candidaturas pelo partido.
Vale ressaltar que apesar da cota de gênero ter origem em um contexto que tem por objetivo neutralizar a questão da sub-representatividade eleitoral e incluir a participação feminina nos espaços públicos de poder, atualmente, esta ação afirmativa é interpretada em benefício do gênero menos representado, e não unicamente em prol de candidaturas femininas. Por esta razão, veda-se apenas registro de candidaturas de mulheres ou apenas de homens na formação da chapa partidária.
E como isso se relaciona a representatividade LGBTQIA+ nos espaços políticos?
As eleições municipais de 2020
As eleições municipais de 2020 sofreram alterações significativas em decorrência da Pandemia da Covid-19, tendo sido, inclusive, aprovada a Emenda Constitucional nº 107 com o objetivo de alterar as datas das eleições e os respectivos prazos eleitorais estabelecidos na Constituição.
Outro importante fator foi o aumento recorde de candidaturas ligadas à causa LGBT. Embora o sítio de dados do Tribunal Superior Eleitoral forneça quantidade numérica de registro de candidaturas baseadas nas auto declarações raciais e sexuais dos candidatos, não há como filtrar informações acerca das identidades de gênero dos candidatos. Segundo informações do Programa Voto com Orgulho (2020) da Aliança Nacional LGBTI+, até o dia 04 de setembro de 2020, foram registradas 585 adesões de pré-candidaturas atuantes em prol da agenda da diversidade de gênero. Destas, 569 (97%) visavam cadeiras nas Câmaras Municipais e 15 (3%) pleitearam cargos de chefe do executivo.
Extraído de: Aliança Nacional LGBTI+, 2020.
Após o pleito das eleições municipais, segundo resultados colhidos pelo Programa Voto com Orgulho, do total geral de votos válidos, as candidaturas LGBTQIA+ receberam 450.864 votos sendo eleitas 93 suplências. Pelo viés político-partidário, o PSOL figurou como a agremiação que mais elegeu candidatos, com 25%. Em segundo lugar ficou o PT, com 22,7% e em terceiro, o PDT, com 2,3%.
A sub-representatividade LGBTQIA+
Vimos que as cotas eleitorais de gênero foram criadas para diminuir a desigualdade de gênero nos pleitos aos espaços públicos de tomada de decisão. Apesar do aumento expressivo de candidaturas LGBTQIA+, ainda há quase inexpressiva representatividade política do segmento. Uma causa disso são os filtros criados pelos próprios partidos políticos liderados, na sua maioria, por homens cis-heterossexuais, que não abertos ao debate da luta sexual e de gênero acabam por confirmar as desigualdades existentes. Nesse sentido, por exemplo, é comum que as campanhas eleitorais se deem de forma pouco receptiva à pauta LGBTQIA+ fazendo com que a maioria das pretensões dos votos seja colhida por candidatos que correspondem ao perfil social dominante.
Cidades como São Paulo e Belo Horizonte obtiveram votações expressivas reconhecidas nacionalmente elegendo Érica Hilton e Duda Salabert, respectivamente, ao legislativo municipal em 2020. Em Aracaju (SE), Linda Brasil foi a candidata mais votada dentre todos os concorrentes ao pleito local. Ainda assim, apenas dois parlamentares assumidamente LGBTQIA+ ocupam cadeiras no Congresso Nacional: Davi Miranda (PSOL), suplente do ex-deputado Jean Willys (Deputado Federal) e Fabiano Contarato (REDE), no Senado Federal.
Ainda, há que se destacar na violência sofrida aos candidatos que foram democraticamente eleitos. Apesar de ocuparem os cargos de forma legítima, muitos se viram obrigados a renunciar seus mandatos por receios às ameaças sofridas frutos de retaliações de adversários políticos.
A presidenta da Associação nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA -, Keila Simpson, em entrevista publicada no Relatório Contra Violência LGBT’s nos Contextos Eleitoral e Pós Eleitoral (2019), relatou o contexto da violência eleitoral LGBT:
“Ficou nítido que a motivação de discursos violentos e de ódio durante a campanha eleitoral contra a população LGBT tomou uma conotação enorme e de uma forma bem prática atingiram muitas pessoas trans. Na verdade é uma população mais visível, uma população que não tem como se ocultar dada sua identidade, que é bem aparente. E o temor foi grande por essa razão, por esse discursos inflamado, pelas notícias de pessoas que acabaram sendo violentadas, agredidas. Em São Carlos teve uma menina, Angela, que foi agredida, teve uma morte em São Paulo, teve violência em Aracaju. Então foram violências perpetradas por esse discursos odioso que vieram da política e porque a gente não tem nenhuma legislação específica que coíba esses atos violentos, essa violência massiva. Motivados por isso, por essa falta, as pessoas que cometeram essas violências sentiram-se no direito de praticá-las.”
Isso significa que na própria vida privada a pessoa LGBT encontra dificuldades mínimas de existência, de forma que isso se reflete também na vida pública. A inserção da comunidade LGBTQIA+ no cenário político deve ser encarada como um exercício diário. No Parlamento, é necessário que todos os grupos sociais sejam devidamente representados para o regular funcionamento da democracia e da legitimidade quando da tomada de decisões. A representação LGBTQIA+ traz consequências positivas, pois retira a falsa impressão de que o segmento não é capaz de oferecer importantes contribuições para a vida política ou outras abordagens de importantes transformações sociais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatísticas Eleitorais
FEITOSA, Cleyton. O que afasta a população LGBT da representação política? Justificando, 2020
Michel Foucault: Microfísica do Poder
José Jairo Gomes: Direito Eleitoral
FONTE: https://www.politize.com.br/representatividade-lgbtqia-politica/