Artigo
Somos Todos Macabéas
Clarice Lispector soube, como poucos, utilizar a língua portuguesa em favor de textos densos, profundos, que articulam de forma notável suas idéias. Tarefa árdua escolher justamente uma personagem como Macabéa, imigrante nordestina desajustada no Rio de Janeiro, para protagonizar um romance: apática, vocabulário limitadíssimo, a nordestina, sob um olhar desavisado, não teria nada a oferecer em termos literários. E eis que Clarice eleva essa aparente nulidade a um alto nível reflexivo, a partir da forma magistral como conduz a narrativa e joga com as palavras e seus sentidos. O leitor é levado a perscrutar o íntimo pseudovazio de uma personagem que abarca em si características comuns a tantos de nós - e imprimir essa identificação do leitor com Macabéa é vital na construção textual da obra. Em “A hora da estrela”, o cruzamento de narrativas diversas – a de Macabéa, a do narrador-escritor (que se dá a conhecer pelos comentários que tece) e a do próprio ato de escrever (nó-síntese de todas elas) – articula a discussão que permeia as escrituras tanto da obra, como da personagem e do próprio narrador. A diversidade dramática decorre, pois, das múltiplas e complexas relações aí envolvidas: entre o escritor e seu texto; entre o escritor e seu público; entre o escritor e a deslocada Macabéa. E a linguagem, nessa teia, emerge como uma personagem em crise, indagando tópicos reflexivos, tais como a existência humana e os laços sociais. Ao longo da narrativa, o narrador-escritor identifica-se com Macabéa, a qual parece muitas vezes se isentar de sentido à medida que vai meticulosamente sendo tratada sob o estigma da feiúra, do ridículo. E é aí que que reside uma das chaves que alavancam nossa proximidade com essa pequenez instigante: muito provavelmente, o narrador busca por encontrar, nessa parca extremidade, algum resquício de estrela, de esplendor – uma tarefa diária no mundo real. Macabéa, no entanto, como tantos outros Pedros e Marias vida afora, parece desprover-se até mesmo de uma experiência de vida capaz de ser registrada em memória, haja vista sua proveniência: órfã de pai e mãe, foi criada sob agrssões pela tia. Sua índole passiva a leva a se interessar por palavras e conceitos (“mimetismo”, “efeméride”, “conde”) que, descontextualizados, não a conduzem a lugar nenhum – ah, essa incomunicabilidade tão presente em nossas vidas. Macabéa cultua as grandes estrelas de cinema, sentindo-se fascinada pelos anúncios tários; tudo à base do cachorro quente com coca cola. Além disso, o despreparo da nordestina para enfrentar as dificuldades da vida torna-se patente em seu cotidiano: fracassa em seu trabalho de datilógrafa, assim como no amor. Olímpico (também nordestino), sua única conquista amorosa, escapa-lhe facilmente das mãos para as de sua colega de trabalho. Enquanto engendra o enredo narrativo, o narrador-escritor assume três presenças distintas, como se ele próprio se visse incapaz de estabelecer uma ordem pragmática, frente ao caos intrínseco à dinâmica das pessoas e de suas relações, frente à necessidade de se extrair movimento desse íntimo tão frágil e aparentemente raso. Primeiramente, conduz a ação e a reflexão a partir do próprio monólogo, o qual se veste de impulso irônico, na medida em que acirra a tragicidade. Em um segundo momento, releva-se o mero relato, ainda que sem perder de vista as interferências monologais. Em sua terceira forma de presenciar os fatos, o narrador-escritor acaba por emprestar aos outros a palavra (como na conversa entre os nordestinos no banco da praça), embora sem se ausentar das cenas. Tais desdobramentos do narrador, ressalta-se, encontram-se intimamente intrincados no enredo textual. Esse vai e vem do foco narrativo acaba revelando as hesitações de sua onisciência diante do desconhecido, daquilo que se quer desnudar em toda sua essência – buscar essa essência em uma personagem como Macabéa implica uma viagem de resignação, dor e libertação. De qualquer maneira, a alagoana Macabéa, ao final, aciona-se, torna-se sujeito agente, em vista das previsões de Madama Carlota, e experimenta as antevisões por esta declaradas – “a cartomante lhe decretara sentença de vida”. Àquela altura, a nordestina já se impregnara daquela impossível felicidade preconizada quando de seu atropelamento. O acidente, pois, não poderia mais vencê-la; ou seja, o “sim” - que pretensamente tenta finalizar o livro – acaba por nos remeter à afirmação inicial da obra (“tudo no mundo começou com um sim”), como que nos convidando a dar continuidade à decifração do enigma, a (re)inventarmos o mundo em contínuo movimento. Como se vê, a personagem toma as dimensões de um substantivo coletivo, plural. Macabéa sou eu, é você, pode ser qualquer um de nós, solitários em meio às multidões apressadas, tentando encontrar nosso lugar no mundo e na vida de alguém, desejosos de reconhecimento, cravados pela dor das negações diárias, das rejeições, da incomunicabilidade torturante, marcados pelas paixões investidas inutilmente. Macabéa está presente nos “não” e nos “sim”, em cada amanhecer, quando optamos por levantar e viver, ou mesmo quando chega a noite derradeira, nossa hora de morrer... © obvious: http://obviousmag.org/pensando_nessa_gente_da_vida/2015/somos-todos-macabeas.html#ixzz40HXAGQXm Follow us: @obvious on Twitter | obviousmagazine on Facebook
O NORDESTINO E A HORA DA ESTRELA
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